….a segunda abolição….

 

 

Reação à ‘PEC
das Domésticas’ evidencia ranço colonialista

 

O texto que
segue é de autoria da advogada Sabrina
Durigon Marques
* e analisa as virulentas reações à aprovação da PEC do
Trabalho Doméstico, a qual caracteriza como uma ‘segunda abolição’.

 

Para Sabrina,
o álibi de ‘quase-familiar’ da doméstica esconde o retrato de uma dupla
exploração.

 

“A primeira é
tratar o trabalho braçal como menos valoroso que o trabalho intelectual, de
forma que sua realização possa ser repassada a baixo custo”.

 

A segunda se
dá pela segregação sócio-espacial, que afasta a população mais pobre para uma longínqua
periferia, de modo que é mais fácil aproveitar dessa relação desvantajosa para
manter a mão-de-obra vivendo na casa do patrão.

 

“É chegada
hora de abandonarmos esse ranço colonialista”, conclui.

 
A segunda abolição da escravidão no
Brasil
“A
escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do
Brasil”. Joaquim Nabuco já alertava que a Lei Áurea não bastaria para
mudar uma cultura.

125 anos após a abolição da escravatura, parece que finalmente se avizinha uma
mudança concreta de costumes sobre a exploração do trabalho.


A “PEC das domésticas”, ao equiparar as domésticas aos trabalhadores
assalariados, causou muita inquietação. Garantir a essas profissionais (e falo
no feminino por que nunca conheci um “doméstico”), os mesmos direitos
que têm seus patrões, trouxe mal estar e preocupações diversas.

 

Ouvi
comentários inusitados: “A ‘minha’ dorme em casa, como farei com ela à
noite? Se for encontrada na cozinha lavando o copo em que bebeu água, poderá
ser configurada hora extra. Talvez tenha que trancá-la no quarto.” Mesmo
que em tom jocoso, essa parece ser a vontade da maioria.


Para refutar
este avanço na legislação trabalhista vale qualquer coisa, até dizer que ela
“é quase da família, e vive melhor aqui em casa do que se voltasse para a
casa dela todo dia, que é longe”.


A apropriação
do tempo é das mais sublimes formas de exploração, porque ela pode ser
tolerada, ela é sutil, pode ser maquiada. E aqui ela pode se dar de duas
maneiras.


A primeira é
tratar o trabalho braçal como menos valoroso que o trabalho intelectual, de
forma que sua realização possa ser repassada a baixo custo, eximindo os patrões
das responsabilidades de cuidarem de suas próprias casas e filhos, porque vale
a pena o custo/benefício.


A segunda se
dá pela segregação sócio-espacial, que, ao valorizar cada vez mais os imóveis
localizados nos centros dotados de infraestrutura, afasta a população mais
pobre para a periferia, obrigando que ela acorde por volta das 4 horas da manhã
e gaste grande parte do seu dia se deslocando pela cidade por meio de
transportes públicos custosos e precários.

 

Diante disso,
é mais fácil aproveitar dessa relação desvantajosa para manter a mão de obra
vivendo em sua própria casa, “quase que como da família.”


Tratar as
domésticas como uma categoria fora do mundo do trabalho só servirá para
mantê-las nessa situação de precariedade, jamais para promovê-las.


Se é o
trabalho o eixo central de manutenção da vida, diginificá-lo é garantir
ascensão e efetiva melhora na qualidade de vida destes trabalhadores.


Apesar de não
ser suficiente, a evolução na garantia e no reconhecimento de direitos é sempre
positiva, e chego a vislumbrar uma possível mudança de comportamento num
horizonte não tão distante.

 

Talvez
estejamos próximos das mudanças prospectadas por Joaquim Nabuco, e é chegada
hora de abandonarmos esse ranço colonialista, essa tal
“característica” que não é motivo de orgulho pra nenhum país.



*Sabrina Durigon Marques é advogada
e Mestre em Direito Urbanístico pela PUC-SP e atualmente trabalha no Ministério da
Justiça

 
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