….as regras e as exceções (homenagem a Senshô)….

Reportagem esquadrinha a desigualdade no sistema de
justiça

 

 

Em homenagem
ao precoce falecimento do jornalista Rodrigo Manzano, neste 20 de julho,
publico no Blog Sem Juízo a belíssima reportagem que escreveu, juntamente com
Cristiane Scarcelli, sobre a desigualdade do acesso à justiça no Brasil, para a
edição 104, da Revista Cult, em 2007, quando, entrou outras pessoas, fui por
ambos entrevistado.

 
A reportagem
é de uma contundência e sensibilidade ímpar e teve a felicidade de retratar a
angústia que muitos dos operadores do direito sentem diante da desigualdade, paradoxalmente
alimentada pelo sistema judicial que tinha como função combatê-la.

Extraí a
versão digital do site da Apadep (Associação Paulista dos Defensores Públicos) e, na pesquisa para encontrá-la,
descobri que a matéria, por sua induvidosa qualidade, chegou a ser
referência bibliográfica de obra acadêmica (Doutorado em Ciências Sociais, UFRN,
apresentada por Maria do Socorro Quirino Scoda, aqui).

 

Para além do jornalismo, ele deixou uma legião de
seguidores-amigos no twitter, com quem compartilhou pérolas de sagacidade,
crítica, ironia e muita sensibilidade. Rimos muito choramos muito com #Senshô.

  

As
regras e as exceções – Rodrigo Manzano e Cristiane Scarcelli*


 

Apesar
das mudanças nos dispositivos jurídicos brasileiros, o
acesso à Justiça ain
da é desigual

 

Era 28 de outubro de 2002, segunda-feira. Euclides de
Araújo Valério passeava entre as gôndolas
de um hipermercado na zona leste de São Paulo. Em certo momento, desejou um rolinho de espuma para pintura: escondeu-o sob a camiseta e tentou sair do mercado.
Foi descoberto por funcionários, indiciado
e julgado. Somente as 150 folhas que
compunham o volume do processo penal –
caso fossem apenas páginas em branco, compradas
em uma papelaria – custariam em média
R$ 3,50. O rolinho de espuma que
Valério escondeu sob a blusa custava,
naquele dia, R$ 1,67. Três anos e
cinco meses depois, Euclides de
Araújo Valério foi inocentado. Um juiz
mudou-lhe o destino.

Quinta-feira, três dias depois, em 31 de outubro, Suzane von Richthofen, seu
namorado Daniel Cravinhos e o irmão dele, Christian, assassinam Manfred e Marisa von Richthofen. Suzane alegou ter
participado do crime por amor ao namorado, relacionamento desaprovado
pela família de classe média. O crime ganhou ares de folhetim. Capítulo a capítulo, da exposição dos detalhes
do homicídio aos entraves e recursos do julgamento, o Brasil pára diante da
narrativa como quem assiste a uma novela, perplexo. Ré confessa, Suzane
esperou, ora em prisão preventiva, ora em liberdade,
o júri popular, que acontece nesse mês, depois
do adiamento
em junho pela ausência de uma
testemunha e pela recusa de seu advogado
de defesa
em permanecer no tribunal. A novela foi esticada. Três anos e nove meses depois, o Brasil espera o capítulo final.

Dois crimes, dois castigos. Um representa a exceção.
Outro, a regra. Com regras e exceções, a justiça brasileira tece a malha com
tramas que se alternam entre personagens que poderiam ser Raskólnikov, de Crime e castigo, de Dostoiévski,
ou então Joseph K., de O processo, de Kafka.

A perplexidade diante
da justiça brasileira resiste dentro e fora de seus quadros. Às vezes, o Judiciário é acusado de
ser a causa de um cenário desolador:
processos estacionados, decisões absurdas, privilégios e condescendência
a uns, rigidez e disciplina a outros. Outras vezes, o Judiciário é sintoma de um mal maior: não seria possível ser
plenamente justo em uma sociedade cronicamente injusta. Segundo o artigo 5º da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza”. José Eduardo Campos de
Oliveira Faria, professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito
da Universidade
de São Paulo, contudo, faz uma ressalva: “Para que se
possa postular igualdade a todos
perante a lei, não é possível ter uma sociedade tão díspar,
é necessário que haja, pelo menos, uma distribuição
eqüitativa de renda”, avalia, “deve haver algum tipo de sentimento de vida
comum, de solidariedade, mas o que se vê é o contrário, é a
exclusão social, a desigualdade
no acesso a bens públicos”, completa.

Se, por um lado, os dispositivos jurídicos brasileiros avançaram
significativamente nas últimas décadas – com a atualização de importantes códigos, como o Civil e o de Processo Penal, e com a criação de instrumentos bastante avançados, como o Código de
Defesa do Consumidor,
o Estatuto da Criança e do Adolescente
e a Lei de Execuções Penais -, por
outro, o desnível entre as classes
sociais no país atinge índices
alarmantes. Ricos e pobres, debaixo da mesma lei, experimentam de maneira diferenciada
o rigor da Justiça. Para cada Suzane na cadeia, há milhares de Valérios. Não é possível, no entanto,
interpretar esse fato apenas a partir de
uma idéia geral de luta de
classes. A inversão populacional, que migra da
zona rural para os centros urbanos e gera uma nova dinâmica nas relações sociais, não pôde ser plenamente compreendida
pelas leis que foram elaboradas antes da segunda
metade do século passado. Afastados
da economia formal, muitos migrantes
são absorvidos pela criminalidade.
O Estado só chega até eles na forma da lei. “O resultado é uma série de distorções
em cadeia que fazem com que presos de baixo potencial ofensivo se misturem aos de alto potencial ofensivo e disso resulta um sistema penal que vai explodindo”,
lamenta Faria.

As interpretações sobre as questões de
Direito no país mudam o tom, mas não o tema. Há quem entenda que a raiz de muitos dos
problemas de justiça se encontra ainda no Brasil do século 19. De acordo
com Luiz Antônio de Souza, professor de Ciências Sociais na Universidade
Estadual Paulista (Unesp), “a
sociedade não trabalhou com a herança da escravidão,
o grupo que hoje é a maioria, dos
não-brancos, sofre essa brutal herança de
não ter acesso às garantias mínimas da
Sociedade de
Direito”. A antiga e perversa
herança gerou, na sua avaliação, um afastamento da justiça dos tribunais em relação à justiça social.
“O pressuposto seria esse: a justiça funciona melhor em sociedades
igualitárias e como não temos uma sociedade igualitária, teríamos de esperar”, afirma. O diagnóstico tende a ser ainda mais pessimista: “Boa parte dos cidadãos brasileiros continua achando que a justiça serve para atender aos interesses do Estado
e dos poderosos. Isso é uma ameaça séria à democracia. Se essa situação perdurar, os brasileiros podem ser contrários à democracia”, conclui o professor.

Foto (na
edição impressa)- Marcelo Ximenez/Arquivo CULT




Subjetivações e apropriações



Nas ruas, não há quem não tenha opinião sobre o Judiciário brasileiro. Nas universidades,
dissertações e teses sobre o assunto
proliferam, em vários departamentos distintos. Na TV, todos os dias,
um e outro apresentador deixam transparecer sua indignação. Editorais e artigos de jornais reclamam mais justiça. E nos anos
de campanha, como este, o tema volta à
pauta com força inexplicável.

Pesquisa elaborada pelo Ibope, em
agosto do ano passado, revela que quem tem melhor imagem diante da
população são os médicos (81%), a
Igreja Católica (71%), as Forças Armadas
(69%) e os jornais (63%). O Poder Judiciário ocupa o 11º lugar da lista, com 45%, atrás da televisão, das emissoras de rádio,
das igrejas evangélicas e dos sindicatos
de trabalhadores. A imagem arranhada tem estreita ligação com a forma como a
justiça se apresenta e é apresentada à
população. “O discurso sobre a
justiça foi apropriado não só pela
classe política, mas também pela mídia”,
avalia José Eduardo Oliveira Faria. “Quando programas de TV e rádio
cobram justiça, isso provoca na sociedade a expectativa de que ela pode ser feita de uma maneira muito rápida, que se esgote durante o tempo do programa. Mas não há ali nenhuma dimensão do
que realmente é um processo judicial.
O censo comum não é capaz de perceber
que esses programas são farsas, são meros discursos,
também não podemos exigir que a sociedade
tenha conhecimento como se dá o
trâmite judicial”, afirma Faria.

Uma das questões mais discutidas
é que grande parte da população não tem acesso efetivo aos
recursos jurídicos que garantam seus direitos mínimos. “A questão não é defender
a democracia ou os direitos humanos, mas sim levar a sério a
universalidade dos
direitos e do acesso à Justiça. É menos de fundamentação
teórica e muito mais de realização
prática a extensão dos benefícios da democracia
a todos os cidadãos.
É absolutamente impositivo e necessário os direitos
a todos. Sem isso, a justiça continua
sendo para aquelas pessoas que podem ter acesso a ela. Os demais vão continuar achando que isso é conversa fiada”, analisa Luiz Antônio de Souza.

Há, no entanto, interpretações divergentes.
Braz -Martins Neto, presidente do Tribunal de Ética da
Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) – Secção São Paulo, entende
que não se trata necessariamente de disponibilidade:
“A justiça é disponível sim, só
não é alcançada.”. Para Martins
Neto, os avanços são visíveis, seja por meio do
aprimoramento dos mecanismos jurídicos, seja por conta da criação de vias de
acesso, como a defensoria pública, em
São Paulo, por exemplo. Já os desvios
– que permitem a impressão de
tratamentos diferentes em casos muito
parecidos – poderiam ser avaliados como distorções
que as próprias leis criam, com as brechas jurídicas e os intermináveis recursos que fazem
acumular processos nas instâncias superiores. “A diferença no tratamento de réus é um mito alimentado pela opinião pública e por formadores desta
opinião. O juiz julga com base nas provas que estão nos autos dos processos, seja o réu um ladrão de
galinhas, seja um milionário, e interpretando
o que está na Lei. É claro que o milionário terá como contratar melhores advogados
que o ladrão de galinhas, mas aí já se trata de uma questão socioeconômica, não jurídica”, explica o desembargador
Celso Limongi, presidente do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo.

Para o vice-presidente nacional da OAB, trata-se de um problema que tem origem no legislativo
brasileiro. “Quando se trata de leis do
Judiciário, o Legislativo não sente
muita atração nem interesse em legislar, porque isso não tem repercussão na mídia, não rende nenhum dividendo
político, não reverte votos em eleições. Ao político só interessam questões
sociais que possam lhe dar
projeção”, critica.


Mudanças,
avanços e soluções



Como presidente do
Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo, Celso Limongi reconhece
que enfrenta diariamente um volume
kafkiano de processos. São 15 milhões.
Diante deles – divididos
entre os juízes de primeira instância,
o total representaria cerca de nove
mil processos por ano para cada um -,
Limongi lamenta que em muitos momentos esse volume seja interpretado como lentidão da
justiça e questiona: “Até que ponto muitos dos processos nada mais são que meras protelações do cumprimento de uma lei ou de um contrato, em que, por exemplo, uma
pessoa entra na justiça para tentar atrasar o pagamento de uma dívida que no fundo ela sabe que tem de pagar?”.

Apesar das reformas fundamentais que a Justiça enfrentou nos
últimos anos – em que se criaram, por exemplo, mecanismos de controle do Judiciário
-, Limongi destaca que os pontos fundamentais ainda não foram alcançados. “O problema está nas leis, nos códigos de
processos. Somente uma alteração nos códigos
mudará isso. Essa é a verdadeira
reforma do Judiciário, que alterará o instrumental de trabalho dos magistrados, de
maneira a tornar a Justiça mais ágil e efetiva. Não basta ser rápida. Tem de
ser também efetiva, respeitada, em uma
palavra: cumprida”, afirma.

Luiz Flávio Borges D’Urso, presidente da
OAB – SP, avalia que os desvios da Justiça se encontram nas estruturas.
“O problema da Justiça brasileira
não está nos advogados, o problema é crônico. Temos uma
situação de deficiência legislativa, temos uma deficiência gravíssima na máquina do Judiciário.
Enquanto hoje nossos filhos conversam em tempo real, a partir de seu computador pessoal com o outro lado do
mundo, ainda estamos costurando os processos com agulha e barbante.”
Para o promotor Carlos Cardoso,
assessor de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo, as reformas promovidas durante
o governo Luiz Inácio Lula da Silva,
por meio da Emenda Constitucional 45 (EC 45/04), de 2004, são insuficientes para que se
resolvam os problemas crônicos a que D’Urso
se refere. “No Brasil, resiste o culto da
forma em detrimento do conteúdo.
Precisamos garantir a supremacia do
conteúdo sobre a forma”, afirma.
Isso significa, inclusive, rever a institucionalização da profissão dos advogados, segundo
Cardoso. “Para isso, é preciso
enfrentar interesses do próprio
sistema Judiciário e da Ordem
dos Advogados
do Brasil. Os advogados
exigem que para tudo precise haver um
advogado. Simplificando os processos, é possível simplificar o Judiciário”, critica. Para Braz Martins
Neto, a EC 45/04 representou um avanço ainda
tímido. “É preciso aperfeiçoar a
legislação processual, triplicar o número de
juízes do Estado de
São Paulo, quadruplicar o número de funcionários”, avalia, “se não
fizermos parte dessa luta para
renovação, não vamos chegar a lugar nenhum, vamos continuar patinando nessa situação a que assistimos
hoje”, finaliza. Luiz Antônio de
Souza, da Unesp, concorda: “Para funcionar, precisa-se de um investimento brutal, senão vamos
continuar dando razão ao título de que o Brasil é um país que tem leis
maravilhosas, mas que a realidade é completamente diferente.”.

Uma das saídas perpassa pela percepção que os juízes
alimentam da realidade
social. Assunto vetado até a redemocratização, volta à tona quando a falência da Justiça se torna evidente. “Em um país tão desigual como o Brasil, não se pode trabalhar com uma norma que seja válida para todos.
Em função da complexidade
da sociedade,
o juiz tem de ser flexível para dar tratamentos diferenciados
às situações multigerenciais, mesmo quando
o crime é o mesmo”, afirma o professor José Eduardo
Faria. “Não se tem resposta absoluta para a crise do Direito
no Brasil”, lamenta Faria.
Enquanto as respostas absolutas não chegam, alguns juízes abrem-se à realidade.

Marcelo
Semer, juiz titular da 15ª Vara
Criminal de São Paulo e presidente do
Conselho Executivo da Associação de Juízes para a Democracia, alinhado com uma geração de magistrados mais sensíveis à realidade
brasileira, afirma que “juízes, promotores e advogados
são formados em um pensamento
positivista, que entende o sistema
como neutro, sem valores, mas esse é um sistema obviamente furado, não existe uma engrenagem perfeita e
neutra”. Para Semer, casos como os da
megaoperação do Primeiro Comando da
Capital, organização criminosa que domina
os presídios paulistas e que tomou de assalto o Estado em maio, é resultado “não dos filhos da impunidade, mas sim dos filhos da punição”.

Semer é voz dissonante no Judiciário. Somam-se a ele outros poucos
magistrados que entendem que o peso da lei deve
ser relativizado. “Nós temos uma
cultura de profunda desigualdade
social, onde algumas pessoas têm mais direitos que outras. E tudo o que é desigual é mais importante que aquilo que é
igual”, afirma, “e nosso sistema jurídico como um todo reproduz
a desigualdade
social existente no Brasil, que é mais gritante que em outros países. O sistema
Judiciário não é apto a reduzir essa desigualdade”, lamenta.

Três anos e cinco meses depois de furtar um rolo de espuma para pintura, Euclides Araújo Valério – exceção das regras no Judiciário brasileiro – foi inocentado. A decisão
do juiz, datada
de 20 de março deste
ano, era clara: os princípios constitucionais devem ter mais força que as leis, quaisquer
que sejam elas. “Não é possível, como decorrência
da prevalência da dignidade
humana, que a liberdade do
indivíduo possa ser sacrificada por insignificâncias como essas”, decidiu
o juiz.

O juiz que mudou o destino de
Valério foi Marcelo Semer. A decisão
não teve destaque nos jornais, nem na
televisão, nem no rádio. Todos estavam ocupados demais
à espera da próxima aparição de Suzane von Richthofen.


*Rodrigo
Manzano e Cristiane Scarcelli são jornalistas
.

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