….Andança: a homenagem em Certas Canções…..

 
Ana cantava com classe e afinação. Eu me esforçava para
fazer a segunda voz, que era o que mal e mal conseguia decorar…..


 
 
 
Nesta semana, faleceu Paulinho Tapajós, um dos autores de
Andança, que ficou célebre na interpretação de Beth Carvalho, e é uma das
lembranças mais afetuosas que tenho das rodas de violão que congregava tanto amigos
quanto sentimentos na pós-adolescência. Nunca fui bom em tocar, muito menos em
cantar, mas ainda sim Andança conseguia me fazer pertencer a esse mundo mágico.
 
Andança ilustra um capítulo de Certas Canções e o horror
do narrador aos karaokês (para conhecer um pouco mais do romance, um diário político-sentimental de um
estudante nos anos 80
, visite o Blog do Certas Canções).
 
Fica como homenagem ao autor, por tantos bons momentos
que proporcionou a muitos.
 
 
-Já me fiz a
guerra por não saber
-Me leva amor
-Que esta
terra encerra o meu bem-querer
-Amor
-E jamais
termina o meu caminhar
-Me leva amor
-Só amor
ensina onde vou chegar
-Por onde
for, quero ser seu par.
Ana cantava
com classe e afinação. Eu me esforçava para fazer a segunda voz, que era o que
mal e mal conseguia decorar. Diego tirava o som no violão e João se concentrava
nos dedos dele admirado pela competência, pensando em como era bom poder tocar
um instrumento. O som rolava, enquanto eu e Ana trocávamos olhares carinhosos.
Quando
acabou, dei-lhe um quase abraço e fiz um rápido cafuné nos seus cabelos curtos
e crespos. Ensaiei um sorriso que não tinha hora para acabar. Mas ela respirou
fundo e saiu para acender um cigarrinho. Eu apenas engoli em seco e respondi
com um balançar de cabeça ao sorriso largo de admiração do João. Levantei, fui
andar um pouco até a janela da casa da Ana Paula. Quando ela voltou, sentou-se,
apoiando o cinzeiro na perna direita, daquele jeitinho que ela gostava de
equilibrar, depois de cruzar as pernas, e perguntou e então com as sobrancelhas negras e espessas, eu não estava mais
ali. Tinha ido para algum lugar distante no universo procurar o meu eixo.
Acho que tão
cedo não voltei, pelo menos em espírito. Porque se estivesse naquela sala,
prestando atenção ao que eles diziam, seguramente não teria apoiado a proposta
de jerico que fizeram para o resto daquela noite.
Karaokê ainda
era uma coisa meio japonesa. A maior parte das casas ficava no bairro da
Liberdade. E metade das músicas tinha acompanhamentos em ideogramas. E mais da
metade das pessoas que estavam por ali cantavam aquelas canções estranhas e
tomavam saquê. Eu não cantaria em público nem que tivesse tomado a garrafa toda
de aguardente naqueles copos quadrados. No máximo eu devo ter silenciado,
enquanto eles decidiam nosso programa e faziam frenéticos convites pelo
telefone, porque karaokê para ser divertido tinha que ser com uma turma grande.
Quando dei por mim, já estávamos dirigindo para o Bexiga, por supuesto, onde havia
uma casa com o sugestivo nome de Desafinado.
Imaginei que a escolha fosse em minha homenagem, mas nem assim me atrevi a
subir no palco. Eu me afundei na cadeira e mais ainda na cerveja.
Nunca ouvi
tanta música japonesa na minha vida, nem quando via rapidamente, zapeando o
controle remoto, o Notícias do Japão na TV Gazeta, num dos vários sábados à
noite que começara e terminara solitário. E tampouco tinha descoberto a comida
japonesa, o que só viria a acontecer uma dúzia de anos depois. Minha única
incursão nos amores orientais, ademais, naquele carnaval em Mauá, tinha se
revelado uma total frustração. A diversão que me restava, portanto, era ver
aqueles outros que cantavam tão mal como eu, mas que não tinham a mesma
autocrítica. Mas nem isso me animava àquela altura. Emburrei-me o quanto pude e
não tive muita inibição em mostrar isso.
Mas fiquei
só, enquanto os outros encaravam com gosto aquela aventura pouco divertida. Não
havia teleprompter, palavras correndo
no vídeo. Aliás, não havia vídeo. Nada. Eram apenas letras datilografadas em
tipos pequenos num papel branco, numa espécie de cardápio, que ficava pendurado
em frente ao microfone, como nos antigos programas de rádio. E, ao fundo,
acompanhamentos irreconhecíveis.
Assim mesmo
eles se divertiram a noite toda. Gegê deu o melhor de si em Caetano, e foi
muito feliz, durante o prelúdio. João imitou Gil por mais de uma vez,
principalmente ao lembrar de todas as meninas baianas. A Ana, com a suavidade,
delicadeza e a contundência que lhe eram peculiares, olhava para nós, e talvez
para mim mais fixamente, desprezando solenemente a ajuda daquele papel
engordurado para cantar à la Maria
Bethania. Quero ver o que você faz, ao
sentir que sem você eu passo bem demais
            Eu
mereci.
 
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