….Tolstoi e a desgraça do sistema penal (Ressureição)….

 

 

 

Uma viagem com Tolstoi ao coração do sistema penal

 

 

O quarto assunto consistia na solução da questão sobre o que era, para que existia e de onde havia surgido a espantosa instituição denominada justiça criminal, cujo resultado era aquela prisão, com cujos habitantes ele, em parte, travara conhecimento, e todos os locais de confinamento, desde a fortaleza de Petersburgo até a Ilha de Sacalina, onde penavam centenas, milhares de vítimas
daquela, para ele, espantosa legislação criminal.

 

Nekhliúdov é um nobre com crise de consciência. Um príncipe convencido de que a propriedade deve ser destinada apenas àqueles que nela trabalham. E culpado pela situação de Máslova que, pelo azar do destino, acabou involuntariamente por ajudar a condenar, em um grotesco erro judiciário que abre o romance Ressureição[1]. Este é ponto de partida para Liev Tolstoi mergulhar seu protagonista no sistema de justiça criminal e o
principal destinatário de seus desafortunados clientes: a prisão.

A visão da largueza da legislação, da crueza e indiferença dos operadores do direito, e da própria essência e finalidades do sistema não poderia ser mais cáustica ao final dessa viagem em um verdadeiro trem fantasma:

Todas aquelas instituições pareciam ter sido inventadas de propósito para a tarefa de condensar ao mais alto grau tamanha depravação e vício que não poderia ser
obtida em nenhuma outra circunstância, a fim de mais tarde propagar, nas proporções mais amplas possíveis e no meio do povo inteiro, esses vícios e depravações condensados. “É como se tivessem formulado o problema de como aprimorar, como tornar mais eficaz, um modo de degradar mais pessoas” (….)

 

Tudo isso era feito não por descuido, não por um equívoco, não uma vez só, mas tudo isso era feito constantemente, ao longo de centenas de anos, com a única diferença que, antes, arrancavam os narizes e cortavam as orelhas, depois marcavam o corpo com varas em brasa e agora algemavam…..

Poucos romances nos proporcionaram uma visão tão contundente do pensamento abolicionista avant la lettre, habilmente construído
pelo impacto do percurso do protagonista pelas diversas camadas do inferno criminal. O anarquismo cristão, como críticos o rotularam, pode até estar datado; não a visão aguçada que se debruça sobre tantas perversões e injustiças penais, às quais descreve de uma forma que nos pareçam profundamente atuais.

Quem o lê descrevendo um júri, na Rússia do final do século XIX, não se sente tão distante do ambiente majestático de muitas cortes:

A figura do presidente e dos juízes, em seus uniformes de golas com bordados de ouro, quando subiam ao tablado era muito impressionante. Eles mesmos sentiam isso e todos os três, como que embaraçados com sua imponência, de maneira tímida e apressada, de olhos baixos, sentaram-se em suas cadeiras de braços, feitas de madeira entalhada….

A sessão é narrada com uma precisão de detalhes, que até espanta a similaridade no ritual:

Teve início o procedimento habitual: a chamada dos jurados, as explicações sobre os ausentes, a aplicação de multa contra eles, as decisões a respeito dos que pediram permissão para ausentar-se e a substituição dos faltosos pelos suplentes. Em seguida, o presidente dobrou uns bilhetinhos, colocou-os dentro de um jarro de vidro e, após arregaçar um pouco as mangas dobradas do uniforme e desnudar os braços densamente coberto de pelos, com os gestos de um ilusionista, retirou um bilhetinho de cada vez, desenrolou e leu. Depois, o presidente baixou a manga e pediu que o sacerdote levasse os jurados a prestar o juramento.

Segundo suas palavras, os direitos dos jurados consistiam em fazer perguntas aos réus por intermédio do presidente, ter lápis e papel e examinar as provas materiais (….) sua responsabilidade consistia em que, no caso da inobservância do sigilo das deliberações dos jurados e ocorrência de contatos com pessoas alheias ao processo, eles estariam sujeitos a punição.

Mas o olhar de Tolstoi é muito mais arguto do que apenas descritivo dos procedimentos que, mesmo à época, já lhe pareciam exageradamente formais.

Um juiz que quer rapidez no julgamento para ter tempo de encontrar sua amante; o promotor que precisa do maior número de condenações possíveis para galgar promoções, e supõe estar fazendo história e mudando a sociedade com seus discursos; um corpo de jurados que pela pressa e negligência, desprezo ou pura ignorância, produz um veredito ininteligível.

De tudo um pouco, nada se subtrai a seu ácido juízo, em especial a pequenez dos argumentos e interesses que se cercam do destino de um réu.

Da insistência proposital da acusação na oitiva de testemunhas que nada elucidam, com o objetivo único de provocar mudança em um corpo de jurados aparentemente desfavorável, a pruridos moralistas, que se sobrepõem aos fundamentos jurídicos para uma decisão
judicial. Sem desprezar o já existente temor da represália de uma velha conhecida: os jornais dizem que os jurados absolvem os criminosos; o que não vão dizer quando os juízes os
absolverem?

Tolstoi passeia pela co-culpabilidade quando lembra das pessoas
em relação às quais a sociedade tinha uma culpa maior do que elas em relação à sociedade
, descreve com rara felicidade o enorme fator criminógeno da prisão (nessas instituições conduzem tais pessoas ao grau mais alto do vício e da depravação, ou seja, aumentam o perigo).
E é atento ao impacto e as particularidades do encarceramento das mulheres, em cuja ala constata, tal como nos dias atuais, que havia bem menos visitantes: ele só via uma multidão de seres cinzentos, como que privados do que era humano, em especial da feição feminina.

Tem uma visão aterradora sobre a seletividade penal, mostrando de um lado os miseráveis no cárcere e, de outro, comportamentos tão reprováveis quanto, que só mereciam elogios das camadas superiores da sociedade. É desse encontro, aliás, que nasce a perdição de Máslova, lançada à prostituição depois de engravidar do próprio príncipe e dali catapultada para o sistema penal. Da cadeia e da miséria, parece que ninguém escapa, é a suma que vai ouvir de suas companheiras de cela.

O pensamento de Neklhiudov ao presenciar o julgamento de um jovem pelo furto de uma passadeira é uma lição que poderia ser ensinada a nossos congressistas que pretendem reduzir a maioridade penal, não estivessem tão interessados em escutar certos deformadores de opinião:

Pelos autos, ficava claro que o menino tinha sido mandado pelo pai para uma fábrica de tabaco, a fim de trabalhar como aprendiz e lá residira durante cinco anos.
Nesse ano, foi despedido pelo patrão, depois de um desentendimento entre o patrão e os trabalhadores e, sem emprego, ele vagava pela cidade sem ter o que fazer, gastando em bebedeiras tudo o que restava. Na taberna, uniu-se a um serralheiro que, como ele, estava sem emprego, fazia mais tempo ainda, e bebia muito, e os dois à noite, embriagados, arrombaram uma fechadura e pegaram o que primeiro caiu em suas mãos. Foram capturados. Confessaram tudo. Puseram os dois na prisão, onde o serralheiro morreu à espera do julgamento. Agora julgavam o menino como uma criatura perigosa, frente à qual é preciso proteger a sociedade. (…)

E o que fazemos? Agarramos um menino desses que, por acaso, caiu nas nossas mãos, sabendo muito bem que milhares iguais a ele continuam à solta, e o metemos na
prisão, em condições de completa ociosidade, ou então o mandamos para o trabalho mais insalubre e absurdo…. Formamos desse modo não uma e sim milhões de pessoas, depois prendemos uma delas e imaginamos que fizemos alguma coisa, nos protegemos e nada mais se exige de nossa parte (…)

Seria melhor dirigirmos a centésima parte desse esforço para ajudar essas criaturas abandonadas, a quem encaramos agora como se fossem apenas braços e corpos….

Mas o libelo adquire verdadeiramente contornos de indignação quando narra a o descaso que provoca a morte de prisioneiros no transporte aos campos de trabalho forçados na Sibéria –oportuna
nota do editor nos ajuda a compreender que se trata de uma narrativa baseada em fatos reais. Tolstoi não perdoa a omissão, como nós perdoamos cotidianamente: Tudo isso aconteceu, pensou Nekhliúdov, porque todas aquelas pessoas, governadores, diretores, chefes de polícia, guardas, julgam que existem no mundo circunstâncias em que a atitude humana com seres humanos não é uma obrigação.

Antecipando-se a uma crítica ideológica, responde pelo protagonista com a surpresa com quem se espanta com esse universo de críticas:

Não sei se sou liberal ou alguma outra coisa –respondeu Nekhliúdov sorrindo, sempre admirado ao ver como todos o associavam a algum partido e chamavam-no de liberal só porque dizia que, ao julgar uma pessoa, era preciso
antes ouvi-la, e que perante a justiça todos eram iguais, que não era preciso torturar nem espancar….
  

É muito comum que depois de trinta anos estudando, ensinando e atuando com direito penal, muitos me perguntem que livros devem pesquisar para aprender as disciplinas, consultar-se sobre processos ou ser bem sucedido em exames.

Não tenho escrúpulos em responder que quem quer que seja que pretenda aprender ou trabalhar com direito penal, deve, sobretudo, amealhar a sensibilidade necessária para compreendê-lo. Não apenas em suas regras, mas, sobretudo, nos seus desacertos, justamente onde o podemos reconhecer em sua magnitude, e assim nos preparar para empregá-lo de forma menos cruel.

Se não é possível ou desejável sofrer na pele a pesarosa experiência de frequentar o sistema penal, seja pela literatura a melhor forma de ganhar sensibilidade com as experiências alheias. Ressurreição não é assim apenas uma dica oportuna, diante da atualidade e persistência de seus relatos, características, aliás, da universalidade dos clássicos. É uma obrigação para quem milita na área criminal.
Pretendendo ou não compartilhar das conclusões de Tolstoi:

Tornou-se claro para ele, agora, que todo aquele mal terrível do qual ele era testemunha nas prisões, nas cadeias, e a segurança serena dos que produziam aquele mal provinham apenas do fato de que as pessoas queriam fazer uma coisa impossível: corrigir o mal, sendo más.

 

 

 


[1]
Referência da edição de 2010 da Cosac Naify, tradução e apresentação de Rubens
Figueiredo
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