….Um perdão cordial….


Não é esquecendo as atrocidades que deixaremos de repeti-las

A ministra Carmen Lúcia resumiu de forma curiosa seu voto pela improcedência da ação que buscava firmar os limites da anistia: “Não vejo como reinterpretar uma lei, trinta e um anos depois”. No ano passado, todavia, o próprio STF em expressiva maioria, havia feito, em dimensão muito superior, o mesmo com a Lei de Imprensa. Entendeu-a totalmente contrária à Constituição, não trinta, mas quase quarenta anos depois de sua edição.

Os dois pesos e duas medidas são representativos do ativismo seletivo que toma conta do STF. Em certas questões, a Suprema Corte não se constrange em fazer papel de legislador –como quando decide que, a despeito da vontade expressa do constituinte que não a previu, a fidelidade partidária estaria escrita nas entrelinhas da lei. Em outros momentos, nega jurisdição. Como afirmou Eros Grau: a tarefa de rever a lei da anistia é do Legislativo, não do Judiciário. Mas a tarefa de interpretar a lei é, e sempre será, do Judiciário.

O que a ADPF da OAB pretendeu não era anular a lei da anistia (a OAB de hoje contra a OAB de ontem, acusou Eros Grau): tratava-se de firmar a interpretação de que as torturas praticadas pelos agentes da repressão, emanadas pelo Estado, não eram crimes conexos aos políticos e, por conseguinte, não estão abrangidas pela anistia. Entender o contrário, significaria legitimar uma auto-anistia do estado torturador –que viola os mais comezinhos princípios do direito internacional dos direitos humanos.

O ministro Celso de Mello ressaltou que nossa anistia não teria esse vício, pois fora fruto de um acordo. Mas em quê condições, foi este acordo efetuado? Em um país ainda sob o jugo do regime militar e sem eleições livres –ou seja, ainda sem democracia e sem liberdade.

Paciência, diria Ellen Gracie, pois não se faz uma transição pacífica entre um regime autoritário e uma democracia plena sem a existência de concessões recíprocas. “A anistia foi o preço que a sociedade pagou para acelerar o processo de redemocratização”, estampou em seu voto.

Pagamos o preço, então, por duas vezes: a primeira por ficar vinte anos sem democracia; a segunda, para esquecer os crimes de quem nos oprimiu sob pena de não voltarmos à democracia. Difícil crer que analisando uma situação similar a esta, em outro contexto, a ministra não reconhecesse alguma forma de extorsão.

O ministro Marco Aurélio que pretendeu por um fim à discussão antes mesmo de começá-la, supostamente por ausência de qualquer dúvida de interpretação, afastou o caráter nocivo do perdão aos torturadores com uma afronta a memória das vítimas: a anistia é ato de amor e paixão.

É possível olhar para frente, sem conhecer o passado?

Para Gilmar Mendes, é a amplitude do esquecimento que contribui para o passo adiante no caminho da democracia. Mas ao esquecermos do período negro, estaremos aprendendo a não cometer os mesmos erros? Os povos que foram vítimas de genocídio, judeus, armênios entre tantos outros, buscam por todos os mecanismos manter viva a memória de seus períodos negros. É a lembrança das atrocidades que nos provoca repulsa, não o esquecimento.

O mito da cordialidade veio novamente à tona, com o presidente da Corte, Cezar Peluso: se é verdade que cada povo resolve seus problemas de acordo com sua cultura, “o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia”. Nós repudiamos a tortura, mas optamos, pela cordialidade, em não puni-la.

O voto de Enrique Lewandoswki acolhia ao menos parcialmente as razões do pedido, por entender que a abrangência da anistia aos agentes do Estado não era automática e devia ser apreciada por cada juiz no caso concreto.

Mas foi o vice-presidente Ayres Brito quem melhor resumiu o sentido do julgamento, entendendo o que estava em discussão naquele momento: Perdão coletivo é falta de memória e de vergonha.

Eros Grau defendeu-se com uma crítica enviesadamente progressista: reinterpretar a lei da anistia é esvaziar a luta pela redemocratização: “Reduzir a nada essa luta, é tripudiar sobre os que, com desassombro e coragem, lutaram pela anistia”.

Mas, findo o julgamento, é questão de se perguntar: quem tripudiou sobre aqueles que com desassombro e coragem lutaram pela redemocratização? Quem exercita com o chapéu alheio nosso lado cordial, admite o silêncio como preço pela liberdade de hoje, alimenta o esquecimento como única forma de dar um passo adiante?

Fechando os olhos aos abusos de ontem, como se justificássemos os de hoje, sob o pretexto do esquecimento, do amor e da paixão, do mal necessário (que, enfim, supõe-se, muitos no fundo acreditem, seja contra subversivos seja contra criminosos), o Estado ensina a seus agentes que cordial mesmo é o povo que apanha, não reclama e depois esquece. Paga o seu preço.

10 Comentários sobre ….Um perdão cordial….

  1. PAULO ROBERTO CEQUINEL 2 de maio de 2010 - 03:15 #

    Prezado Marcelo:

    Não sei como você tem o meu e-mail, mas, de plano, que bom que o tenha.
    A decisão do STF sobre a revisão da Lei da Anistia é, para além de qualquer dúvida, solene bofetada na cara de cada brasileiro e, muito especialmente, nos homens e mulheres que foram torturados e assassinados pela ditadura militar.

  2. Ivana Lima Regis 2 de maio de 2010 - 14:23 #

    Gostei do texto, que reproduzi no Xad Camomila, e do blog, que passo a acompanhar. A propósito, vc já viu o documentário "Apesar de Você – os caminhos da Justiça"? Vale a pena! Gde abraço.

  3. Anônimo 3 de maio de 2010 - 09:57 #

    Mas só não entendi a razão do seu silêncio sobre a tese da irretroatividade da lei penal punitiva.

    Vc discorda de Beccaria? Creio que não.

  4. Gerivaldo Neiva 3 de maio de 2010 - 13:16 #

    Prezado Marcelo,
    esta é a melhor análise que li sobre o julgamento da ADPF.
    Vc conseguiu demonstrar que "jurídico" e "político" estarão sempre juntos, inevitavelmente.
    Parabéns pelo blog.
    Adicionei na lista de blogs que sigo no meu próprio blog.
    Abraço.

    Gerivaldo Neiva
    Juiz de Direito
    http://www.gerivaldoneiva.blogspot.com

  5. Anônimo 3 de maio de 2010 - 13:35 #

    Prezado Marcelo, parabéns pelo blog e pelo artigo. Em linhas gerais concordo contigo.
    Abraço!
    Marcos A Perez

  6. Zelinda Paschöalick 3 de maio de 2010 - 17:02 #

    Marcelo!
    Que legal este seu blog!
    Somente com a luz dissolvemos a escuridão. E sua inteligência e acuidade é um farol!!
    bjs

  7. José Carlos Fernades 4 de maio de 2010 - 00:50 #

    Parabéns pelo texto. É realmente uma pena que o Supremo Tribunal Federal ainda não tenha compreendido a extensão da infeliz decisão que proferiu. Os cadáveres insepultos vindos dos porões da ditadura foram colocados em novas e mais profundas covas e sobre elas, tal como na sentença que condenou Tiradentes, foi lançado sal para que de lá nada mais cresça. Espero que não seja no Cemitério de Perus. Lamentável. José Carlos Fernandes. Advogado e Consultor Jurídico.

  8. Anônimo 4 de maio de 2010 - 06:10 #

    Eloquente, até agora, o silêncio do juiz q defende a retroatividade de lei penal punitiva.

    Mas, ainda aguardo sua fala sobre esse tema.

  9. Marcelo Semer 4 de maio de 2010 - 12:55 #

    Caro Anônimo.
    Não há no caso irretroatividade da lei penal. A ação proposta visa conferir a lei da anisitia a interpretação de que os crimes cometidos pelos agentes do Estado não são "conexos" aos políticos, como de fato não o são. Não cria tipos penais, nem estabelece punição retroativa. Podia ter sido interpretada assim desde o início. Mas como o STF tem mostrado em vários julgamentos, o tempo não impede uma nova interpretação (que o diga o julgamento considerando a lei dos crimes hediondos editada quinze anos antes inconstitucional).

  10. Marcelo 12 de maio de 2010 - 04:10 #

    Ainda bem que o STF aniquilou mais essa politicagem barata, bancada pela ideologia dos politiqueiros da OAB de então. Quando sair mais alguma coisa no blog do Fred eu volto pra comentar.