….papoulas vermelhas…

Vale a pena ler o conto ainda inédito de José Américo Rodrigues Gomes dos Santos. Cultor da língua como poucos, de rara sensibilidade, neste belo texto, ele reinventa a vida dos sentidos depois da vida.

PAPOULAS VERMELHAS

Fui morto com seis tiros nas costas numa tarde de outono e calor, embaixo de uma macieira. Não sei quem me matou. Também não sei se foi assassinato ou sacrifício.

Quem me tirou a vida também me tirou a roupa. E me enterrou de pé, só a cabeça de fora, olhar, se olhar houvesse, voltado para o leste. A cada dia, ao nascer, o sol lançava seus primeiros raios sobre o meu rosto, mas não ofuscava o meu olhar, que olhar não havia.

Minha cabeça ficou sobre a relva entre as maçãs que tinham caído da macieira. Natureza morta.

Depois de algum tempo, abutres começaram a voar em círculos sobre a minha cabeça. Um comeu um dos meus olhos. Outro comeu o outro. Depois os dois começaram a escalavrar as maçãs. Não as que tinham caído da macieira. As do meu rosto.

Buliçosos vermes puseram-se a corroer meu cérebro, escarafunchar minhas entranhas, esgravatar minhas vísceras, sem nada poupar.

Noites e dias se sucederam. Sóis, luas, estrelas.

Calor, frio, chuva, vento.

As folhas da macieira ficaram amarelas, avermelhadas, ferrugíneas. Caíram todas. Galhos erguidos semelhavam garras querendo tocar nuvens.

Tudo passava, até o tempo.

Era incessante o escabichar dos vermes em meu corpo. Se pudesse, sentiria cócegas, mas não podia, não sentia.

Tudo se transformava, a relva se renovava. O tempo teimava, teimava, e passava.

Novas folhas nasceram na macieira. Flores brancas vieram adornar a árvore. Depois, novos frutos, pequenos e verdes no nascimento. Cresciam e tornavam-se vermelhos.

Aves pousavam na árvore. Debicavam maçãs maduras, alimentando-se.

A macieira alimentava aves. Meu corpo alimentava vermes. Nem o couro cabeludo os deteve. Roeram pele, gordura, tendões, cartilagens, músculos.

A relva sempre se renovava.

Havia dias de muita chuva. Outros, de muito vento.

Sobre minha cabeça – agora caveira – borboletas azuis e amarelas adejavam parecendo bêbedas. Pousavam sobre flores e ,quando partiam, levavam vida.

Em certas noites, relâmpagos iluminavam o céu. Trovões ribombavam com grande estrondo. Eram assustadores para quem podia ser assustado. Não para mim, que susto não tinha. Nem podia ter.

Elegantes e velozes pardais cortavam os ares, pousavam na macieira ou na relva, debicavam aqui e ali, procurando o que comer.

Abelhas também vinham, levando e trazendo vida.

O tempo não se aquietava, tudo se transformava, até meu corpo que já teve vida, vida que me foi tirada com seis tiros nas costas numa tarde de outono e calor, embaixo de uma macieira.

Papoulas vermelhas nasceram ao redor do meu crânio, sobre o lugar em que me enterraram de pé, olhar, se olhar houvesse, voltado para o leste.

Tiraram-me a vida que tinha, não a que pudesse vir a ter.

Renasci em dois abutres, numerosos vermes , nas papoulas vermelhas.

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