….cem anos de Adoniran, o Carlitos do samba….

Adoniran Barbosa introduziu o excluído como personagem principal da cidade, o caipira urbano. Cantou os deserdados do progresso, os que sofreram com o crescimento sem tomar carona nele. Foi a mais completa tradução de Sampa.

Seria difícil não se comover com as histórias de uma mulher que morre atropelada vinte dias antes de seu casamento, de uma família despejada em reintegração de posse sem lugar para viver ou do morador de favela que vê seu barraco inteiro tragado por um enorme temporal.

Mas quando elas nos são contadas, e em especial cantadas, por Adoniran Barbosa, a agonia e a graça se misturam e nos fazem sorrir ao mesmo tempo em que nos tornam próximos das tragédias e mazelas de São Paulo, que ele conheceu e compôs como ninguém.

O tragicômico é assinalado com uma simplicidade nada menos que genial.

Em uma espécie de resignação sempre resistente, Adoniran reintroduziu o excluído como personagem principal da cidade. É ao redor dele, que ela ganha vida.

Adoniran cunhou seu Carlitos no samba – o adorável vagabundo, que nos faz rir com seu empenho e seu fracasso, sua fragilidade para enfrentar as violências, injustiças e intempéries da grande cidade. Ora boêmio, ora trabalhador, mas sempre um pobre com dignidade e bom coração.

Como Chaplin, Adoniran também misturou, ele mesmo, artista e personagem. Terno, chapéu e a eterna gravata borboleta se combinavam com a deliciosa e inconfundível linguagem, meio italiana, meio inculta, que dizia encontrar pelas ruas do Bexiga.

Como o matuto Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, Adoniran recriou o caipira na cidade grande.

Neste agosto, a contar-se pelos registros legais, Adoniran estaria fazendo cem anos. Mas ele está é fazendo falta. Um pouco da São Paulo antiga se foi com ele. A luz do lampião que não mais nos ‘alumeia’.

Adoniran foi poeta grande da gente pobre. Seu habitat eram malocas e favelas, moradas de baixo custo e de quase nenhuma proteção.

Seus personagens serventes, engraxates, camelôs, jardineiros ou operários foram os portadores da poética do humilde, na qual um apaixonado faz aliança para a noiva com a corda do cavaquinho, o abraço é mais apertado, por que não usa “as bleques tais” e a solidariedade infinita, a ponto de quem está na desgraça enxergar um necessitado em situação ainda pior a quem deve ajudar.

É um samba da tristeza, mas, sobretudo, da saudade.

De quem viveu, mesmo na maloca, os melhores dias das suas vidas. Ainda assim, é um samba que nos delicia e faz rir dos erros, dos tropeços e gafes de seus Jocas, Matogrossos e de seus inúmeros Joãos.

Adoniran captou como poucos a sensação da exclusão, de quem foi sendo largado pelo caminho. A perda, a inadequação, o desconforto dos que sofreram com a industrialização e o crescimento, sem tomar carona nele.

O sentimento de estrangeiro em sua própria cidade, vítima desprotegida das transformações que os afastam ainda mais de seus modestos espaços.

Os barracos são derrubados para subirem os ‘adifícios artos’.

A praça da Sé é modernizada e vira madame. Não tem mais o relógio para os namorados, o jornaleiro, o engraxate jogando cacheta o dia inteiro -ressabiado, ele recomenda: vai ver, mas não vai sozinho para não se perder.

A estação do trem do bairro que é ‘pinchada’ ao chão, para mais tarde fazer surgir o Metrô.

Tempos modernos. Adoniran cantou os deserdados da ordem e os excluídos do progresso.

A simplicidade, no entanto, escondeu um artista genial.

Um letrista incomparável que ultrapassou as regras da língua para atingir rimas inesquecíveis: a bala do revórver, as ‘hora que vareia’ e Pafunça, cujo desprezo comparou a de um ‘alevador que num fununça’.

Como gostava de dizer, é preciso saber falar errado.

Adoniran fez do popular, clássico, mas ninguém desaprendeu com ele.

A truculência da censura viu uma péssima influência no português caricaturado de Samba do Arnesto. Ele apenas retrucou com sabedoria: vou esperar a burrice passar. Felizmente, ela passou.

Adoniran é dono de uma biografia quase nada autorizada.

Seu nome, conta-se, é uma apropriação de um colega de boemia e um sambista. João Rubinato ficou apenas nos documentos. Nestes, nem sua data de nascimento é confiável. Na vida, se confunde com o personagem que criou. Por isso, ninguém cantou Adoniran como Adoniran.

Também ninguém cantou São Paulo o tanto quanto ele.

Jaçanã, Bexiga, Casa Verde, Mooca e o Brás. Ermelindo Matarazzo, Vila Ré e uma nostálgica Vila Esperança. Esquadrinhou cada um dos lugares do centro velho: Praça da Sé, Viaduto Santa Efigênia, Praça da Bandeira, Praça Júlio de Mesquita, Rua dos Gusmões. E quando saiu de São Paulo, num dia de praia, só podia mesmo ter ido ao Guarujá.

O espaço se fez tão importante quanto a língua. Quase não há músicas sem referências a bairros, ruas e vilas desta cidade na qual se abrigou por inteiro. Como Woody Allen, em Nova York, a figura de Adoniran é indissociável de Sampa.

Foi a nossa mais completa tradução, apesar de ter nascido no interior.

Mas nenhum estudo, palavra, ensaio ou artigo, é mesmo capaz de reproduzir a mínima parte da emoção que se tem em ouvir suas músicas.

Afinal, como ele mesmo cantou, “quem gosta de discurso é orador, quem gosta de conversa é camelô”.

[consulte as colunas do blogueiro, no Terra Magazine]

4 Comentários sobre ….cem anos de Adoniran, o Carlitos do samba….

  1. Tânia Regina 14 de agosto de 2010 - 19:01 #

    Gostei do blog e linkei .
    Abç
    Tânia Regina
    http://tania-bloglegal.blogspot.com

  2. Paulo Pimenta 15 de agosto de 2010 - 23:16 #

    Grande Marcelo!
    Belo texto em homenagem àquele que tão bem cantou nossa cidade, e ainda nos encanta e ajuda a matar as saudades que por vezes ecoam na alma dos paulistanos ausentes. Abração. Pimenta.

  3. Marcelo Semer 16 de agosto de 2010 - 00:39 #

    Grande Pimenta. Você também é um paulistano que faz muita falta por aqui. E ainda por cima, do Jaçanã….Que bom que o Blog pode servir para diminuir um pouco as longas distâncias.

  4. Anônimo 16 de agosto de 2010 - 13:43 #

    Pois é…

    Tudo o que foi dito, e, ainda mais a prova de solidariedade com a moloca "legalizada", que foi oferecida aos "VAGABUNDOS QUE NÃO TEM ONDE DORMIR".
    Pena que ele não viu mais uma "veiz" seu barraco ser demolido em benefício do tar princípio do interesse público, "pra" a linha do metrô, rsrs.
    É isso aí…
    Um abraço,
    nerçu