….disputa de poder por trás do caso Battisti….

Na política, nós até podemos gostar quando os juízes acertam. Mas o que fazer quando eles erram?

Com o Supremo recomposto, a partir das próximas semanas, prevê-se mais uma daquelas discussões intermináveis.

Por insistência do governo italiano, e pela firme anuência do presidente Cezar Peluso, o fantasma do caso Battisti deve voltar a assombrar a Corte.

No meio do ano passado, depois de um exaustivo debate, o STF decidiu, quase na bacia das almas, que o presidente da República é quem daria a última palavra sobre o assunto.

Na semana que passou, Dilma Rousseff respondeu a seu colega Giorgio Napolitano, explicando que a extradição ainda depende de uma nova decisão final da Justiça.

Mais do que um jogo-de-empurra, estamos diante de um desgastante cabo-de-guerra. Inútil, como quase todas as demonstrações explícitas de poder.

Questões relevantes estão à espera de julgamento no STF: a Adin do estado laico, a união homoafetiva, aborto de fetos anencefálicos, cotas raciais, terceirizações pelas OS, afora um gigantesco acervo de recursos que aguarda pauta.

Ainda assim, o ministro Cezar Peluso desarquivou o caso Battisti no período de recesso e se manifestou pela necessidade de rediscutir o tema, insinuando sua frontal contrariedade à decisão tomada por Lula.

Peluso sugere, em suma, que os ministros sejam fiscais do Executivo no âmbito de uma decisão diplomática, agora em homenagem à integridade de um tratado internacional.

Curiosamente, o próprio STF vem ignorando a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia, como se a aceitação da competência do tribunal da OEA também não decorresse da validade de um tratado internacional.

Por que alguns acordos deveriam ser seguidos e outros maltratados?

A repercussão do caso no país também é inusitada.

É estranho que a luta armada italiana possa ter mais relevância do que os crimes cometidos na época da nossa ditadura militar. Será mais fácil olhar os calos da mão do vizinho?

A discussão do caso Battisti, como está posta, entretanto, envolve menos os limites da liberdade italiana no passado ou a legitimidade e integridade de seu governo no presente, do que o propriamente o futuro da democracia no Brasil.

Tradicionalmente, o STF sempre agiu nas extradições em uma função garantista, avaliando a compatibilidade do pedido do país estrangeiro com as nossas leis.

Podia ele mesmo negar o pedido, se vislumbrasse violação dos princípios defendidos pelo Estado brasileiro. Mas nenhum pedido era deferido sem a chancela do presidente da República.

Em resumo, a aceitação do STF sempre funcionou como uma condição necessária, mas não suficiente à extradição.

O próprio tribunal também cultivou a tradição de arquivar o processo de extradição, com a concessão de um refúgio pelo governo, sugestão que foi dada pela própria Procuradoria Geral da República. O parecer do MP não foi acatado e há quem pretenda que o STF simplesmente decida por cima da decisão do presidente, o que na prática significa decidir em seu lugar.

A reforma do Judiciário teve como principal consequência o fortalecimento de poder do Supremo.

Resultou em uma concentração de competências e uma hierarquização sem precedentes na Justiça, sacrificando-se a independência dos juízes, pretensamente para reduzir a duração dos processos.

Conforme as recentes pesquisas do Ipea e FGV têm nos mostrado, todavia, a satisfação da sociedade com o Judiciário está em queda, mesmo depois de seis anos destas mudanças.

O maior protagonismo conferido à nossa Corte Suprema pouco têm ajudado para criar uma boa percepção do funcionamento de justiça, quando não prejudicado.

A hipertrofia do STF ainda não está na agenda das preocupações políticas. Mas deveria.

Os parlamentares, por exemplo, não se aperceberam a tempo da usurpação de poder que a criação das Súmulas Vinculantes produziram. Obrigatórias na Justiça, mas também fora dela, as súmulas são enunciados superiores às próprias leis. Uma espécie de pequena Constituição ¿porém, sem povo. A Súmula das Algemas bem mostrou o quanto pode servir para uma profilaxia de poder.

Que o ativismo dos juízes seja empregado para a garantia de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal é não apenas possível como fortemente desejável .

De que outra maneira se fariam cumprir direitos que o próprio constituinte elencou como prioridades, quando são expressamente ignorados pelos governantes em suas políticas públicas?

Obrigar um município a construir creches para menores de seis anos, diante da previsão de abrigo constitucional, é irrefutável.

Mas que o ativismo sirva de álibi para a transcendência do poder, permitindo que o Judiciário invada funções típicas dos representantes eleitos é, no mínimo, temerário.

Na seara da política, nós até podemos gostar quando os juízes acertam.

Mas o que fazer quando eles erram?

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6 Comentários sobre ….disputa de poder por trás do caso Battisti….

  1. Jeová Barros de A. Júnior 16 de fevereiro de 2011 - 13:07 #

    Caro Marcelo,

    leio constantemente o seu blog e hoje é a primeira vez que teço comentários nele.

    Sem dúvida, a extradição, ao longo da existência jurídica dela, passou por profundas transformações.

    Basta lembrar que o instituto do refúgio, umbilicalmente ligado à extradição, era utilizado para dar proteção aos criminosos comuns, na idade média, enquanto que os criminosos políticos, por cometerem crimes de lesa-majestade, eram entregues pelos monarcas aos pares deles, sem titubear.

    Penso que está em marcha uma mudança de paradigma desse modelo jurídico; basta ver o que tem ocorrido no continente europeu, com a instituição da chamada "Euroordem", que, dentro em pouco, irá substituir a extrdição, na União Européia.

    Esse novo instituto tem dado uma nova característica à perseguição dos criminosos que tentam se evadir da aplicação da justiça penal, uma vez que os critérios passam a ser muito mais jurídicos que políticos, na "entrega" deles aos países requerentes.

    Creio ser essa a tendência da extradição, dentro do Direito Penal Internacional: evitar que a entrega de criminosos possa estar balisada por critérios políticos, ou seja, evitar que seja baseada em voluntarismo.

    Os doutrinadores europeus, de fato, têm defendido que, quando há tratado entre o país requerido e o país requerente, não existe uma mera faculdade, uma discreção do país solicitado, mas sim verdadeiro dever jurídico.

    Tudo isso se dá por causa da internacionalização do Direito, bem como pela revisitação da soberania, que, em tempos de globalização, tem recebido novos matizes.

    Forte abraço,
    Jeová Barros de A. Júnior.

  2. Sedição 17 de fevereiro de 2011 - 14:47 #

    Caro Marcelo,
    Estou feito o Jeová. Sou um frequentador diário de seu blog e apreciador de seus textos, mas pela primeira vez faço um comentário.
    O acerto e a visão exposta no seu texto não deixa dúvidas quanto as razões para desarquivar o processo.
    Mas o que me chama mais a atenção é que a sua Excelência, atual presidente do STF, seguindo o modelo do seu antecessor, convoca os representantes dos demais poderes para um novo pacto republicano. Que diabos é isso? O pacto republicano não foi firmando quando o adotamos a mais de um século em substituição à monarquia? A manutenção deste pacto (e não reedição), exige respeito e autonomia dos poderes. Não pode o STF, depois de entregue a responsabilidade da extradição de Batisti ao presidente da República, como manda a Constituição, querer revogar este ato. Isso definitivamente não é republicano, porque afeta a autonomia e atribuições de cada poder.
    Na verdade, o tal discurso do III Pacto Republicano, como os demais (aliás alguém tem notícias de algo êxito em relação ao Pacto I e II?), é puramente midiático, como não poderia deixar de ser. A este propósito resumi:
    "De pacto em pacto a República vai a reboque: com os privilégios de antes; os personagens de sempre; e as promessas de nunca".
    Um grande abraço Marcelo.
    Denival Francisco da Silva
    Goiânia – GO

  3. Anônimo 18 de fevereiro de 2011 - 00:07 #

    "Quando a justiça quer, os cestos sobem os rios, os peixes cantam nas árvores e os pássaros fazem ninhos no fundo do mar…" Humberto de Campos (o verdadeiro, não o psicografado) em "Às sombra das tamareiras". Um abraço (Sidney)

  4. Marcelo Semer 19 de fevereiro de 2011 - 01:55 #

    Jeová e amigo Denival: venham com frequência, como o Sidney, que é habitué.
    Acho que tem um pouco de tudo por aí: mudança de paradigma, temperado pelo ativismo desenfreado. Mas eu gostaria de ver o STF aceitando todos os tratados.

  5. Anônimo 20 de fevereiro de 2011 - 11:45 #

    Desculpem-me, mas não está havendo um erro de raciocínio jurídico? O Pacto de San José foi ratificado em 92. A CF é de 88. A lei da anistia foi recepcionada, diz o STF. Eros Grau, o único que poderia decidir de forma emocional, disse que a revisão da validade da lei deve ser pelo legislativo. Ou é isto, ou o Brasil abre mão da soberania e segue o que a sentença – e não o tratado, pois este carece de interpretação – diz. Abre-se o precedente para que, em matéria de tratados, o STF tenha instância superior revisora.
    Já o caso Battisti é simples: a causa da recusa é a possível perseguição política que poderia ser vítima, o que só existe na cabeça de quem não quer extraditá-lo.
    Saudações, Flavio

  6. Marcelo Semer 8 de março de 2011 - 21:19 #

    Flávio.
    Não acho que a decisão deva ser emocional. Mas partir, como o STF partiu, da premissa de um grande acordo nacional em 1979 (quando ainda estávamos sob ditadura) é um erro histórico. No mais, toda adesão a um sistema internacional de garantias representa uma diminuição de soberania; tivéssemos vivos sistemas como esse durante a Alemanha nazista, duvido que muitos defendessem ardorosamente o exercício da soberania. A questão do Battisti me parece mais a de fincar (ou não) limites para o exercício da jurisdição. O exagero de fazer leis e exercer a diplomacia, mais cedo ou mais tardem, vai se mostrar excessivo para nós juízes.