….Escola de Justiça….

Livro de Cássio Schubsky emociona contando a história do Departamento Jurídico XI de Agosto

Terminei o texto que segue há alguns dias. Antes de saber da súbita morte de Cássio Schubsky, organizador do livro “Escola de Justiça” (Imprensa Oficial). Não tive tempo de publicá-lo. Faço-o, agora, como homenagem ao amigo Cássio. Homenagem e agradecimento, porque Cássio passou seus últimos dez anos escrevendo as histórias das instituições jurídicas e suas entidades, e com elas formatando um retrato contundente da construção da democracia no país.

No fundo, contou as nossas histórias. Mas não houve quem não se surpreendesse com as descobertas de fatos e pessoas que passaram por nossas carreiras e estariam desalojadas da história sem o esforço do Cássio.

Cássio juntou com maestria os conhecimento profissionais na História e no Direito (onde nos conhecemos) e jamais abandonou seus compromissos ou seu engajamento social.

Obrigado Cássio, pelos fieís retratos que você nos legou.

Lembranças da Escola de Justiça

São meninos bem vividos, o que eu podia esperar?

Elizete vinha como cliente e imaginava encontrar pessoas bem distantes de seu cotidiano, que provavelmente nem entenderiam os seus problemas. Mas se surpreendeu com a forma calorosa como foi acolhida e o esforço que eles fizeram para lhe auxiliar.

Do outro lado do balcão, reproduzindo o que sentiram os meninos de várias gerações, pode-se colher a tradução de Marcio Sotelo Felippe: Um choque de realidade.
Os jovens eram estudantes de direito do Largo São Francisco e estagiaram no Departamento Jurídico XI de Agosto, onde aprenderam muito mais do que as lições das Arcadas. Aprenderam a fazer petições e a fazer audiências. Mas, sobretudo, a conhecer o direito dos pobres e as vicissitudes para patrocinar seus interesses em um universo legal que conspira contra.

Casos como o de Elizete e depoimentos como o de Marcio, desencontrados no tempo, mas reunidos no espaço, recheiam “Escola de Justiça”, livro coordenado por Cássio Schubsky que relata, com precisão e leveza, os noventa anos do mais antigo escritório particular de assistência jurídica gratuita.

Como todas as recentes obras de Schubsky, que já se tornou um especialista na história de instituições jurídicas, e na importância delas para a construção da democracia, o livro é rico em belas fotos, documentos e, principalmente, tocantes entrevistas.

Com essa variedade, “Escola” esquadrinha a dedicação dos estudantes, os esforços empreendidos para manter o serviço de pé e a satisfação dos atendidos ao longo do tempo.

Foram muitos em quase um século, mas uma minúcia perto do volume tão expressivo de carentes do Estado, condenados a mais carência em todos os serviços que o poder público lhe destina. Até mesmo a Defensoria Pública, hoje instalada em São Paulo, ainda sofre com o número de profissionais aquém de sua necessidade.

A história que “Escola” narra começa em 1919, ano oficial da criação da Assistência Jurídica Acadêmica (AJA), a primeira denominação do Departamento Jurídico, que mudaria de nome em 1947. Por suas páginas, podemos saber que o escritório precedeu departamentos públicos de assistência judiciária, que cresceu com doação de ex-alunos e que sofreu –e muito- com o descaso do poder público. Por duas vezes, convênios que o mantinham foram revogados, nas gestões de Paulo Maluf e Jânio Quadros, deixando estudantes e assistidos em pânico.

Mesmo assim, da beira de uma interdição pelo corpo de bombeiros à expectativa de uma reforma que o amplie, o 17º andar do edifício situado na praça João Mendes, 62, no centro de São Paulo, ainda está de pé para servir de testemunho do profícuo trabalho. E lá ainda estão o Wilsinho e o Vitão, cúmplices e parceiros de gerações e gerações de estudantes.

Por lá passaram milhares de estagiários. O caleidoscópio de entrevistas que a obra generosamente nos traz permite que saibamos que eles viraram advogados, ministros, juízes, promotores, procuradores, delegados, defensores. Mas o ponto em comum é a importância do Jurídico, que, em muitos casos, definiu suas trajetórias.

O ministro do STF José Antônio Dias Toffoli militava no núcleo de moradia, prestando assistência jurídica a encortiçados; Sylvia Steiner, hoje no Tribunal Penal Internacional, evoca a experiência com réus presos e o conhecimento da cadeia que o Jurídico lhe proporcionou; o desembargador Dyrceu Cintra afiança que o estágio o ensinou a conhecer o direito além das leis, que veio a traduzir na máxima de Stammler: “O jurista que não é mais do que um jurista é uma triste coisa”.

A história conta o quanto o próprio Departamento Jurídico fez diferença. A coragem de assumir defesa de presos políticos em pleno regime militar. O esforço de décadas em inserir-se em questões da habitação popular, nas quais a ação jurídica se mescla com a mobilização social. A busca pelos direitos da concubina, que paulatinamente se transforma em jurisprudência.

As páginas de “Escola” nos ajudam a concluir, no entanto, que a maior de todas as lições foi justamente o contato com a população carente e as transformações que isso provocou nos meninos bem nascidos.

Aprender a conhecer o outro talvez tenha sido a melhor virtude do tempo em que lá estagiei.

Certo dia, surpreendo-me ao atender uma cliente no plantão da tarde. Como tantas outras, ela trazia seus documentos amarfanhados em sacos plásticos. Não me recordo qual ação iria propor, mas lembro como se fosse hoje quando, depois do esforço de retirar e desembaraçar os seus papéis, deparei-me com a certidão de nascimento. Era o dia de seu aniversário. Quis agradar-lhe mostrando que percebera e ensaiei um tímido parabéns. Ao invés de me agradecer ou apenas sorrir, a senhora franziu os olhos e me indagou ainda hesitante: o doutor tem certeza? Na dúvida não apenas olhei de novo, como lhe mostrei. Ela não disse nada, mas se sensibilizou com a descoberta. Silenciosamente, derrubou uma lágrima que me derrubou e eu tentei me reerguer para continuar lhe aconselhando.

Foi o meu choque de realidade.

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