….Tolstói e o arquivamento de um inquérito….

Governadores, chefes de polícia, guardas, julgam que existem circunstâncias em que a atitude humana com seres humanos não é uma obrigação

Numa época em que a atitude humana com seres humanos não parece ser uma obrigação, e sim um fardo, vale a pena ler a passagem em que Nekhliúdov, protagonista de Ressurreição, de Tolstoi, se indigna com a morte de prisioneiros russos, no transporte para os trabalhos forçados:

“Sim, assassinaram”, repetiu consigo as palavras ditas para a irmã. E na sua imaginação, por trás de todas as impressões daquele dia, surgiu com uma vivacidade fora do comum o belo rosto do segundo prisioneiro morto, com a expressão sorridente nos lábios, a expressão severa da testa e a orelha pequena e sólida ao pé do crânio raspado e azulado. “E o mais terrível de tudo é que assassinaram e ninguém sabe quem assassinou. Mas assassinaram. Levaram o homem, como todos os prisioneiros, por ordem de Máslennikov. Máslennikov, é provável, cumpriu suas funções habituais, assinou um papel timbrado com sua rubrica idiota e, é claro, já não se considera culpado. O médico da prisão que examinava os prisioneiros pode considerar-se ainda menos culpado. Ele cumpriu com rigor a sua obrigação, separou os debilitados e ninguém poderia prever nem aquele calor terrível nem que os prisioneiros seriam levados à rua já tão tarde e tão aglomerados. O diretor? … Mas o diretor apenas cumpriu a determinação de, em tal dia, encaminhar tantos condenados aos trabalhos forçados, tantos deportados, homens e mulheres. Também não pode ser culpada a escolta, cuja obrigação consistia em receber, segundo uma contagem, tantos prisioneiros em tal lugar e entregar o mesmo número em outro lugar. A escolta conduziu o cortejo como fazia de costume e não podia supor, e muito menos podia prever, que pessoas tão fortes como aqueles dois não iam suportar e morreriam. Ninguém é culpado, mas pessoas foram assassinadas, e assassinadas, apesar de tudo, por aquelas mesmas pessoas que não são culpadas de tais mortes.

“Tudo isso aconteceu”, pensou Nakhliúdov, “porque todas aquelas pessoas, governadores, diretores, chefes de polícia, guardas, julgam que existem no mundo circunstâncias em que a atitude humana com seres humanos não é uma obrigação”.

Comentários fechados.