….viciado é o distante (Blog do Rosivaldo)…

Quando uma decisão judicial nos faz refletir (e se indignar)

A crônica que segue foi extraída do Blog do juiz Rosivaldo Toscano Jr, de leitura indispensável. Logo de entrada, ele anuncia: “Por trás da magnificência de uma toga há, na essência, sempre, um homem, igual a qualquer outro repleto de anseios, angústias, esperanças e sonhos”. Vale a pena conhecê-los.

Viciado é o distante – uma história

A audiência demorava, mas já se aproximava do fim. O caso: réu que havia subtraído seis barras de chocolate, avaliadas em R$ 31,80, e as trocado por crack. Era a vez das alegações finais da defesa. O defensor público pediu a aplicação do princípio da insignificância. O acusado, um jovem mulato magricela e tatuado, trajando roupas surradas, ouvia tudo de cabeça baixa e olhar perdido. Algemas.

– Bira, é um idiota esse defensor público. Você tá vendo? Por isso que esse país não vai pra frente. Levanta a cabeça, vagabundo! Com esses bandidos não se pode alisar. – comentou em voz baixa um colega acadêmico de direito que assistia à audiência para efeito de prática judiciária. – E Bira sussurrou, reforçando:

– É um bandido safado, Miguel. Já pensou? Furtar chocolates pra trocar por crack? O negócio dele é tirar as coisas dos outros. Mas largar o vício que é bom, nada!

Viciado sem-vergonha! – Logo depois, Bira olhou para o relógio. Faria isso umas dez vezes em poucos minutos. Começou a bater com a caixinha em uma das pernas. Olhou para o maço e salivou. Mas não podia sair da sala no meio da audiência, sob pena do juiz não assinar sua ficha de comparecimento.

Alguns minutos depois, a sentença. Já era hora. Condenação por furto. O juiz disse que “a consideração isolada do valor da res furtiva não é suficiente para não se aplicar a lei penal, pois o fato típico existiu, embora envolvendo seis barras de chocolate que seriam vendidas para comprar drogas (o que afasta o furto famélico) e porque se trata de réu useiro e vezeiro na prática de furtos, o que impede o reconhecimento da bagatela para não se estimular a profissão de furtador contumaz.”.

– Isso é que é Justiça. Só assim esse país tem jeito. – comemorou Bira, enquanto batia a caixinha compulsivamente na coxa.

Colhida a rubrica do juiz na ficha de comparecimento da prática forense da faculdade, Bira saiu apressadamente. Ainda no corredor, finalmente pôde matar o desejo. Abriu a caixinha de Free, pegou o isqueiro e acendeu um. Deu um trago longo. Olhos fechados por uns segundos. Alívio… Trajeto até o estacionamento. Entrou no carro. Ligou o rádio. Jingle de uma marca de cerveja. Ao final, a famosa frase, dita apressadamente, “beba com moderação”.

– Beba com moderação, beba com moderação… – Bira balbuciou. Riu de tudo aquilo, afinal, era quinta-feira. Happy hour com amigos da faculdade.

Na mesa do bar, assuntos triviais. Observaram um homem de meia-idade bêbado que quase caiu por sobre a mesa. Foi-se, trôpego, amparado por um constrangido garçom.

Assuntos do papo: mulheres, próximas provas da faculdade e fatos engraçados da última balada. Como eram todos amigos de longas datas, lembraram momentos bons vividos juntos, e outros nem tanto:

– E o Marcelo Pezão? Dona Dora ligou lá pra casa e pediu que fôssemos vê-lo. Amigos, temos que visitá-lo. É como irmão, cara. Irmão é irmão. – apontou Lucas. Bira acendeu outro cigarro.

– Caraca! Nunca fui numa clínica de reabilitação de dependentes químicos. – exclamou Joaquim.

– Quinho, Pezão precisa é de apoio. E amigo é pra essas coisas, não é? Soube que ele fumou até aquele violão que tanto amava. Fumou quase todas as roupas. Fumou até jóias de Dona Dora e um relógio de seu Rafael. O crack não perdoa, amigos. Ou interna ou morre. – lastimou Bira.

– Pobre Pezão. Pobre Pezão… – lamentavam. De repente, uma angústia, uma dor. O abismo. Silêncio na mesa. Bira, de mãos suadas, rapidamente acende outro cigarro. Lucas – consternado – acena ao garçom:

– Por favor, traz mais uma cerveja.

O próximo é dependente químico. Viciado é o distante. Sem-vergonha é sempre o outro

2 Comentários sobre ….viciado é o distante (Blog do Rosivaldo)…

  1. Edu Almeida 27 de abril de 2011 - 11:53 #

    Obrigado pela indicação do http://www.artefazparte.com no Facebook. Parabéns pelo seu blog também, minha irmã (Juliana Almeida) sempre fala dele. Li pouco, por enquanto, mas foi suficiente para gostar bastante, em especial pela proposta. Pode deixar que vou divulgar também. Abraços!

  2. Marcelo Semer 29 de abril de 2011 - 05:13 #

    Então, entre e fique a vontade Edu. Farei com o mesmo com o artefazparte. Parabéns