….mobilidade social aguça preconceito….

Como diz Galeano, o mundo está se dividindo entre os indignos e os indignados

O texto que segue é de uma entrevista concedida ao Jornal do Commercio (jornalista Fabiana Moraes) e trata sobre o avanço do preconceito e o renascimento das manifestações de rua por intermédio das redes sociais. As reações conservadoras mais intensas não estranham: “momentos de mobilidade social, tanto como os de aguda depressão, são mais propícios para aflorar situações de preconceito”.

O juiz e escritor Marcelo Semer, ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia e responsável pelo Blog Sem Juízo (http://blog-sem-juizo. blogspot.com) analisa há anos a política nacional e sua relação com vários movimentos civis. Aqui, ele fala sobre as manifestações de cunho conservador vistas tanto nas ruas quanto em espaços como a internet.

JORNAL DO COMMERCIO – Nossa incensada cordialidade parece ter trincado após tantas manifestações racistas/preconceituosas observadas nas redes sociais, tema de um artigo seu. Esse aspecto sempre esteve presente na sociedade nacional e agora ganhou mais visibilidade ou há um exagero midiático em relação a este fenômeno?

MARCELO SEMER – Bom, devemos partir do princípio que a cordialidade é mesmo um mito e que talvez se reforça diante de um histórico diminuto de violências internas nos processos de ruptura, que também podem estar vinculadas a mecanismos mais reprimidos de expressão da vontade popular. Mas, ainda assim, acredito que os momentos de mobilidade social, tanto como os de aguda depressão, são mais propícios para aflorar situações de preconceito. Isso se mostra visível no desenvolvimento diferenciado entre as regiões (havendo clara insatisfação de populações de Estados mais avançados hoje em relação ao momento de maior crescimento do Nordeste, por exemplo) e em especial na ascensão social propriamente dita. A revolta com o acesso a posições antes exclusivas gera certo desconforto da classe média (como a crítica que aeroportos viraram rodoviárias). O mesmo ocorre diante da modernização das relações e da crescente incorporação de grupos marginalizados no cotidiano dos direitos (por exemplo, os homossexuais). São movimentos que reputo como reativos – reação ao crescimento e desenvolvimento social.

JC – Preconceito e conservadorismo são a mesma coisa? O conservadorismo guarda, inevitavelmente, fenômenos como o preconceito (de cor, gênero, orientação sexual)?

MARCELO SEMER – Creio que a postura do preconceituoso é, por excelência, de matiz conservadora. Embora esteja mais presente no pensamento de direita, não se pode simplificá-lo a uma clivagem direita-esquerda – porque o preconceito atinge camadas conservadoras de ambos os lados.

JC – Existe um movimento nacional, o Trilha de Tiradentes, que assume se basear no Tea Party norte-americano. Como vê um movimento baseado em uma sociedade rica como os EUA (e de miscigenação específica), entre outras diferenças, sendo aplicado ao Brasil?

MARCELO SEMER – Acho que o movimento do Tea Party, em si mesmo, é um aprofundamento do conservadorismo americano. Os conservadores tradicionais norte-americanos se distinguem fundamentalmente pela aversão ao Estado social e luta pela redução de tributos. O Tea Party injeta no ultraconservadorismo uma xenofobia mais intensa e terrorismo eleitoral. O discurso de “fim-de-mundo” tem provocado reações destemperadas, como foi o caso recente do atirador do Arizona que buscou matar uma deputada democrata que era um dos “alvos” do ultraconservadorismo. Penso que a introdução da questão religiosa no debate eleitoral brasileiro foi uma réplica da estratégia ultraconservadora ancorada no Tea Party – desviar o foco da economia, para buscar em questões morais a destruição do adversário. No Brasil, os reflexos do terrorismo eleitoral certamente se viram nos dias que se seguiram na classe média urbana do Sul-Sudeste que atribuía aos nordestinos a “culpa” pelo resultado eleitoral.

JC – Nas últimas semanas, vimos vários exemplos de repressão policial no País (marcha da maconha SP, Bope contra Bombeiros no Rio, polícia agredindo manifestantes no Espírito Santo). Porque esse tipo de ação está voltando a acontecer, com o governo ordenando de maneira menos constrangida este tipo de ação?

MARCELO SEMER – A repressão policial só mostra o estágio ainda atrasado da incorporação dos valores democráticos. Acho que depois de um certo entorpecimento, existe uma maior predisposição para as manifestações de rua e as polícias estão mostrando claramente a incapacidade de lidar com essa expressão. Acho que nós também estamos sendo influenciados por esta nova forma de manifestação, por intermédio das redes sociais, e trazendo para o debate político pessoas que dele estavam afastadas. Algumas manifestações espontâneas, sem líderes, como se viu na primavera árabe e nos acampados da Europa, também estão se espalhando por aqui (o churrasco da “gente diferenciada” a “Marcha pela Liberdade”) que são movimentos inéditos e talvez por isso mais difíceis de serem compreendidos – sobretudo, uma crítica às lideranças tradicionais. A democracia vai ter de aprender a lidar com isso, porque este parece ser um movimento sem volta. Do nosso lado, quero dizer, no que respeita aos juízes, sobretudo a compreensão de que somos basicamente garantidores dos direitos fundamentais e não agentes da censura.

JC – Você acredita que o Brasil está passando por um novo momento, no qual surgem, ainda que timidamente, forças ideológicas que entraram em confronto mais explicitamente em um passado não distante (anos 60)?

MARCELO SEMER – Respondi no anterior e acrescento: não acho que seja um revival, acho que é algo novo. A intermediação das redes sociais, que não exigem líderes convocando, e a vinda às ruas, de uma juventude alheia à política, formula um movimento diferente. Vai penar quem não conseguir entende-lo desta forma.

JC – A primavera árabe e os recentes protestos na Espanha, além das citadas marchas no País, indicam que estamos nos “indignando”?

MARCELO SEMER – Como diz Eduardo Galeano, o mundo está se dividindo entre os indignos e os indignados. Aqui, por óbvio, temos ambos.

[leia outros pontos da reportegam no site Chico Bruno:
“Nas ruas, ecoa o grito conservador”
“Esquerdistas e conservadores”]

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