….arquitetura de tribunais e democratização das salas de audiência…

A sala de audiências está concebida como espaço de intimidação do acusado e onde existe um desequilíbrio notório em desfavor da defesa relativamente à parte contrária, o Ministério Público

Autorizado pelo juiz Rubens Casara, co-organizador da coletânea (“Temas para uma perspectiva crítica do direito: estudos em homenagem ao professor Geraldo Prado*), reproduzo o texto “Apontamentos para a democratização da sala de audiências”, escrito pelo jurista português Eduardo Maia Costa (Juiz do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal e ex-membro do Ministério Público).

O brilhante estudo, que remonta à arquitetura dos prédios da Justiça (“O tribunal é concebido não tanto como o lugar onde se administra justiça, se exerce a tutela judiciária, antes como aquele onde se impõe a ordem e a autoridade, onde se exerce o poder na sua elementar crueza”), se centra na necessidade de democratizar a sala de audiências criminal –tema que voltou à baila por aqui, com o realce ao sistema acusatório marcante nas seguidas alterações da legislação processual.

As referências são portuguesas, mas plenamente compreensíveis aos operadores de direito no Brasil -com exceção das fotos que anexei como ilustração.

Apontamentos para a democratização da sala de audiências, Eduardo Maia Costa

Todo o espaço do tribunal (o «palácio da justiça») é marcado por sinais reveladores de uma cultura autoritária. A justiça é enquadrada em espaços e encenada com signos que a conotam com a autoridade e a manutenção da ordem, em detrimento dos valores da equidade ou da paz jurídica. O tribunal é concebido não tanto como o lugar onde se administra justiça, se exerce a tutela judiciária, antes como aquele onde se impõe a ordem e a autoridade, onde se exerce o poder na sua elementar crueza.

Essa afirmação severa do “jus imperium” é congruente com uma cultura autoritária, mas não com uma cultura democrática, pois, para esta, a autoridade do Estado é apenas um instrumento de salvaguarda dos valores e das instituições democráticas, sempre sujeita às limitações impostas pelo princípio da proporcionalidade, e jamais um valor em si.

Mas, na perspectiva autoritária, o espaço judiciário, o palácio da justiça, é concebido, nas suas diversas vertentes (enquadramento urbanístico, arquitectura, divisão interior dos espaços, decoração, etc.), como instrumento de glorificação da magnificência do poder punitivo do Estado, de alguma forma antecipação do “juízo final”, dirigido não só aos arguidos, às partes, aos “utentes” da justiça, mas a todos indiscriminadamente, à própria colectividade no seu conjunto.


(Palácio da Justiça do Porto)

No projecto ideal, corporizado pelo palácio da justiça típico do Estado Novo (de notória influência mussoliniana), o edifício do tribunal surge destacado no espaço urbanístico em que se insere, geralmente uma praça (tendencialmente a praça principal da urbe), foco de atracção visual de quem passa. Exteriormente, tem aspecto sólido, maciço, imponente, em que o peristilo imprime a marca dos templos antigos: majestade e sacralidade do poder nele exercido. Mas outros sinais se evidenciam, como a “hierarquia” de planos, que obriga a que se suba necessariamente para chegar ao tribunal (escada exterior ou, não a havendo, interior), e sobretudo a colocação de esculturas ou painéis exteriores de aspecto marcadamente guerreiro, como guardas da fortaleza (alegorias da justiça com a espada na mão e feroz catadura — Thémis), que infundem uma imagem do poder judicial como um poder distante, implacável, inflexível, feito a uma escala diferente e superior à das pessoas que a ela vão ser submetidas. É este o palácio da justiça do Estado Novo, que podemos observar por todo o País, em escala maior (o exemplo mais flagrante, de certo modo o arquétipo, é o Palácio da Justiça do Porto) ou menor (por exemplo, o Palácio da Justiça da Póvoa de Varzim, síntese reduzida da mesma concepção). Após o 25 de Abril, a arquitectura judiciária diversificou-se, deixando de existir um modelo unitário de palácio da justiça, embora algumas das características apontadas atrás persistam em manifestar-se aqui e além.


(Palácio da Justiça de Povoa do Varzim)

A sala de audiências é, de todo o espaço judiciário, naturalmente o segmento mais marcado pela influência dessa visão autoritária da justiça, pois é o lugar central do exercício do poder. Aí, a arquitectura, a decoração da sala e a própria ritualização dos actos, serão elementos importantes da administração de uma justiça autoritária: na distribuição dos espaços, com a desigualdade de planos entre acusação e defesa, e a “humilhação” do acusado no “banco dos réus”; na decoração, com a representação de cenas de batalhas e outras cenas históricas quase sempre de conteúdo intimidatório, viradas que estão “para baixo”, e também de alegorias ferozes da justiça.

Em síntese: a sala de audiências dos nossos tribunais está concebida como um espaço de intimidação pessoal do acusado e onde existe um desequilíbrio notório em desfavor da defesa relativamente à parte contrária, o ministério público. A sala de audiências condensa toda uma concepção que nos orienta desde a porta do palácio da justiça: a da justiça/Thémis, a justiça cega e guer-reira, a justiça que acima de tudo quer infundir respeito e temor a todos indistintamente, e não apenas julgar e proteger quem a procura em demanda da palavra justa que restaure a paz jurídica.

E se o 25 de Abril modificou a arquitectura judiciária, já quanto à sala de audiências, não se pode dizer que tenha trazido qualquer alteração significativa relativamente ao modelo anterior.

Lamentavelmente pouca atenção se tem prestado a este tema, como se a cena judiciária, o espaço em que se administra a justiça, fosse indiferente para o exercício da função de julgar. A legislação portuguesa foi sempre parca em prescrições sobre a organização do espaço judiciário. A Novíssima Reforma Judiciária de 1841 (a grande reforma judiciária liberal) dizia apenas que o lugar dos «espectadores» deveria ser separado do recinto destinado ao tribunal por uma «gradaria» ou «teia» (art. 481º).

Os diversos Estatutos Judiciários do Estado Novo eram mais explícitos: os juí-zes e os magistrados do ministério público situar-se-iam no mesmo plano, o ministério público em assento separado e à direita dos juízes; os advogados, os assistentes técnicos e os solicitadores estariam colocados «a seguir» (fór-mula eufemística para dizer: «em plano inferior»); os funcionários judiciais ficariam em frente da tribuna dos juízes (obviamente em plano inferior); nada se diz sobre o lugar do réu e dos restantes intervenientes; apenas se indica que na teia (recinto reservado para o tribunal) tomam também lugar os intervenientes no acto judicial (arts. 100º e 101º do Estatuto Judiciário de 1962).

As notas de encomenda de projectos de edifícios são ainda mais explícitas da ideologia oficial. Podemos sintetizá-la da seguinte forma: separação da sala em duas zonas, uma para o público, a outra para o tribunal e restantes intervenientes processuais; diferenciação de planos entre o tribunal e o ministério público, por um lado, e os advogados, por outro, e ainda entre a bancada destes e o pavimento da sala; confinamento do réu dentro de uma «teia» (o «banco dos réus»).

Esta hierarquia de planos, discriminando a defesa em benefício da acusação, e o encerramento do réu no seu «banco» exprimem em toda a sua crueza (ou crueldade) quer o autoritarismo da cena e do acto, quer o pré-juízo de culpabilidade que envolve o réu, «degradado» a uma posição cénica humilhante de «pré-condenado», mau grado ainda gozar da presunção de inocência.

Esta sala de audiências concebida pelo Estado Novo não sofreu alteração com a instauração da democracia, nem mesmo com a reforma processual que pretendeu introduzir um processo de tipo acusatório.

Na verdade, o legislador do Código de Processo Penal de 1987, que consagrou um processo basicamente acusatório, também não se preocupou em dar indicações sobre a sala de audiências. Diferentemente, o legislador italiano teve o cuidado de, no “código de execução” do Código de Processo Penal de 1988, que estabeleceu uma reforma de tipo idêntico à portuguesa, inscrever a seguinte norma: “Nas salas de audiências de julgamento os bancos reservados para o ministério público e para os defensores estão colocados ao mesmo nível e virados para os juízes. As partes civis sentam-se ao lado dos seus patronos, salvo se houver preocupações de segurança. A cadeira destinada às testemunhas é colocada de forma a permitir que fiquem visíveis tanto dos juízes como das partes” (art. 146º).

Com efeito, o novo processo penal, em que assume papel central o princípio da igualdade de armas, impõe uma nova sala de audiências. Mas não só essa como outras preocupações devem intervir na configuração de uma nova cena judiciária, que se reportam à salvaguarda da dignidade das pessoas, e do acusado antes de mais, à distribuição dos lugares, etc. Tudo para que a cena judiciária esteja conforme com os princípios que regem um Estado de direito democrático. Nesse sentido, e numa reflexão meramente provisória, avançam-se algumas breves considerações.

Várias ideias-força devem guiar a concepção da sala de audiências (e vou referir-me exclusivamente à audiência penal). Desde logo, a laicidade. Não apenas no sentido de ausência de referências de índole religiosa (como os crucifixos), que a I República baniu dos tribunais, como também as alusões ideológicas, disfarçadas de referências “patrióticas”, com que o Estado Novo povoou as salas que construiu. Da mesma forma, a iconografia da Justiça deverá ser repensada, em ordem a eliminar o acima referido carácter “terrorista” com que ela é representada. Em suma, a sala de audiências deve ser um espaço sóbrio, neutro. Essa sobriedade não deve, porém, prejudicar um aspecto essencial, que é a funcionalidade. Este aspecto liga-se com outro, que é a solenidade.

A audiência não é uma “reunião de trabalho”, um encontro informal entre partes adversas. A audiência é um debate sujeito a regras rigorosas, desenro-lando-se num espaço e num tempo próprios. A audiência tem um ritual específico, que não é apenas, nem sequer sobretudo, pompa e circunstância, mas sim uma sábia distribuição do direito à palavra por todos os sujeitos processu-ais, em ordem a habilitar o juiz a proferir a palavra final – a que dita a justiça do caso. O rito processual da audiência (o seu cerimonial) é uma garantia imprescindível dos direitos das partes e, dessa forma, da realização da justiça. A ritualização processual é a redução do conflito subjacente aos limites de uma luta igual, em que vão ouvir-se os argumentos da razão, e não os da força.

Essa ritualização relaciona-se intimamente com a solenidade, e historicamente foi adquirindo aspectos diversos consoante as culturas judiciárias. É universal-mente utilizado um traje profissional para magistrados e advogados, e essa «tradição» não constrange de nenhuma forma a realização de uma cerimónia de índole genuinamente democrática. O traje simultaneamente investe e identifica o papel de cada um na cena perante o público, o que aliás é impor-tante para a clarificação dos seus poderes, dos seus deveres, do seu estatuto.

Um aspecto ligado a este é o da distribuição e hierarquia dos lugares. Quer no plano simbólico, quer no funcional, parece inevitável a centralidade e a proeminência do lugar do juiz. Ele é o presidente da cerimónia e é ele quem vai decidir. Ele está acima das partes e equidistante delas. Ele está natural-mente num lugar mais alto e central.

As partes, além de equidistantes do juiz, devem situar-se no mesmo plano. Donde, inquestionavelmente, o ministério público não pode conservar o plano proeminente que sempre foi o seu na sala de audiências portuguesa, pois na audiência, e embora mantendo o seu estatuto de órgão de justiça, que lhe impõe sempre um dever de imparcialidade e objectividade idêntico ao do juiz, ele é aí sobretudo uma das partes em litígio, aquela que formulou a acusação, a qual, é certo, não é obrigado a defender na alegação final, mas que tem o dever funcional de explorar em todas as suas virtualidades em ordem ao seu sucesso. Em síntese, os princípios do acusatório e da igualdade das partes impõem uma estrita igualdade de direitos na audiência entre acusação e defesa, e consequentemente um posicionamento igual na cena judiciária.

Mas o arguido, onde colocá-lo? Ao lado do seu advogado, integrando a bancada da defesa, como no processo civil? Ou no tradicional “banco dos réus”?

Diga-se desde já com toda a clareza que só a primeira solução se afigura compatível com o princípio da presunção de inocência e com o princípio da igualdade de armas, com o processo acusatório, em suma. Na verdade, a colocação do arguido no clássico “banco”, completamente rodeado pela “teia”, confina-o a um espaço fechado, encerra-o num espaço que simbolicamente antecipa o espaço prisional. O “banco dos réus” é um lugar submetido à vigilância do tribunal e à observação do público, degradando o arguido à condição de objecto do processo. Por outro lado, o processo acusatório faz do arguido uma parte, o verdadeiro adversário do ministério público na audiência. Por isso, o arguido deve estar ao lado do seu advogado, formando uma única bancada, situada em frente da do ministério público. Só assim haverá igualdade de armas na sua plenitude. Por outro lado, só assim o arguido terá porventura condições para uma defesa eficaz e sem limitações. É que, para articular devidamente a defesa com o seu advogado, o arguido deverá poder estar permanentemente em contacto com ele, transmitindo-lhe informações que aquele não possua e que poderão ser essenciais para a instância das testemunhas e mesmo para a preparação das alegações orais finais.

É claro que o arguido é não só um sujeito processual, como também um meio de prova, devendo submeter-se ao interrogatório do juiz logo no início da audiência, não se podendo furtar às respostas sobre a identidade pessoal, e tendo o direito de prestar declarações, nessa altura como em qualquer momento da audiência, sobre o objecto do processo. Enquanto meio de prova, o arguido não pode usufruir da sua posição «cénica» de parte. Quando prestar declarações, ele deverá deslocar-se para o lugar destinado àqueles que prestam declarações perante o tribunal (testemunhas, peritos e o próprio assistente quando indicado como meio de prova).

Falemos então desse outro sujeito processual – as testemunhas. Na nossa sala tradicional, elas sentam-se numa cadeira colocada à frente da “teia” que encerra o arguido, viradas de frente para o juiz e de lado para as partes, que não dispõem geralmente (nomeadamente os advogados de defesa e de acusação) de uma completa visibilidade do rosto das testemunhas por elas instadas. Por isso, justifica-se inteiramente a disposição italiana acima citada, quando fala da necessidade de o lugar das testemunhas ser visível tanto para o juiz como para as partes. A cadeira destinada às testemunhas deve situar-se ao centro, de forma a que a testemunha esteja frente-a-frente com o juiz e equidistante das partes e de todos perfeitamente visível e audível.

Por último, esse silencioso (por vezes nem tanto…) mas indispensável «sujeito processual» – o público. Não participando directamente no debate, a presença do público, melhor, a abertura da sala à presença popular, é um elemento es-trutural de uma justiça democrática. Sem publicidade, a justiça não é digna desse nome. A publicidade é aliás um princípio adquirido desde a criação, com o liberalismo, do processo penal das garantias, e tem um claro sentido de controlo externo, de controlo democrático, da actividade dos magistrados. Em ter-mos de geografia da sala, estes princípios obrigarão certamente a que o público não seja relegado para uma mera posição de “corpo presente”. A sua presença não deve ser meramente “alegórica”. O “povo”, não tendo evidentemente a faculdade de intervir na audiência, tem certamente o direito de ver e ouvir o que ali se passa. A sala de audiências deve, pois, ser construída em termos de esse direito ser efectivo.

Nos dias de boje, a publicidade da audiência não se pode, porém, restringir à mera presença de público. O interesse da audiência pode não ser meramente local, antes de âmbito regional ou mesmo nacional (para não dizer mais). Isto quer dizer que a publicidade da audiência significa hoje a possibilidade de divulgar pelos órgãos de comunicação social o que se passou dentro da sala. Significa consequentemente que é essencial conferir condições de trabalho aos “mediadores” da informação – os jornalistas. Necessário é pois conferir-lhes um espaço próprio, que lhes permita transmitir uma informação correcta e isenta.

Duas notas ainda sobre a comunicação social. A primeira é que parece seguro que uma informação correcta só poderá ser transmitida por profissionais habilitados, ou seja, com um mínimo de preparação jurídica. A formação adequada dos jornalistas e a sua credenciação para o acompanhamento da audiência são essenciais para o exercício da sua função. Por outro lado, publicização da audiência não exige de forma alguma as “transmissões em directo”, quer por imagem, quer mesmo apenas por via sonora. O julgamento que se desenrola na sala de audiência não pode ser dobrado por um outro desenvolvendo-se fora do seu espaço específico, que é o único que confere as garantias às partes para que a justiça seja feita. A justiça-espectáculo dos media é uma perversão da justiça democrática e a ela não podem ser feitas quaisquer concessões.

Um último aspecto tem a ver com a transparência. Esta ideia-força, estrutural numa justiça democrática, reporta-se a um extenso número de aspectos dos actos praticados na audiência, da leitura da acusação, passando pela reprodu-ção oral das provas escritas contidas no processo, até à sentença, cuja motiva-ção (não só de direito, como de facto) é indispensável para o controlo externo da função de julgar. O processo oral, acusatório e contraditório, que é o nosso, exige que tudo passe pela audiência, pelo debate, não havendo lugar para espaços recônditos ou penumbras processuais a partir da acusação.

Mas a transparência impõe não só essa exaustividade, como ainda outro aspecto — a identificação do julgador. Com efeito, o anonimato do juiz tem ressonâncias inquisitórias, ressonâncias do tempo do juiz inquisidor, o juiz sem rosto, transcendente e inacessível. A identificação do juiz, a personalização do tribunal, tem uma dupla função: por um lado, dessacralizante (a justiça é administrada por homens comuns investidos democraticamente naquela função) e, por outro, responsabilizante, na medida em que expõe mais facilmente a deci-são do tribunal ao juízo crítico da opinião pública.

Isto implica que o juiz (bem como o magistrado do ministério público, para o qual valem igualmente as considerações expostas) esteja identificado na sala de audiências.

É inquestionável que o espaço e o ritual da audiência não são indiferentes para a administração da justiça e que a sala de audiências portuguesa típica não constitui um espaço que favoreça o princípio da igualdade de armas ou respeite o princípio da presunção de inocência. O espaço cénico não favorece um ritual democrático. Estranho é que esta matéria tenha sido geralmente ignorada até hoje.

*CASARA, Rubens R R; LIMA, Joel Correa de. Temas para uma perspectiva crítica do direito: estudos em homenagem ao professor Geraldo Prado. Lumen Juris, 2011, p. 357-361.

3 Comentários sobre ….arquitetura de tribunais e democratização das salas de audiência…

  1. Anônimo 3 de agosto de 2011 - 00:18 #

    Desculpe, não sei falar pouco e a questão abre a necessidade de expressar minha opinião. É longa, como uma conversa entre amigos, à sombra das tamareiras. Como tal, voce poderá deletar após a leitura, como palavras que desaparecem ao vento. A discussão sobre o layout do mobiliário nos tribunais assume discussão absurda, e nessa qualidade, nos remete ao “O processo”, de Kafka. Nele, o bancário Josef K., será confrontado com o tribunal que o processa. Todo o roteiro e desenrolar do livro se transforma em manifestações sacralizadas do tribunal em face ao cidadão. O fato dele não saber do que é acusado é metáfora da circunstância de que tudo no judiciário é estruturado de maneira a despertar sentimento de culpa em quem por ele é convocado. Essa emoção é necessária para a aceitação da condenação final ou para alimentar a esperança na absolvição, que nunca virá e, se vier, chegará como benesse do tribunal e não como um reconhecimento do que é justo e direito.
    No livro, de início, o herói procura demonstrar que é superior aos guardas e inspetores e menospreza a estrutura do “processo”. Mas tudo evolui para a angústia, quando começa a observar que a realidade a sua volta não é como ele pensa ser. Todas respostas as suas indagações são manifestações sacralizadas do tribunal. Revestido de liturgia, burocracia e impessoalidade.
    Tive um professor, há muito tempo, que afirmava não existir “erro judiciário”. O judiciário, dizia ele, é estruturado para colocar fim a um conflito. E colocará, por mais absurda que possa vir a ser a solução. O juiz seria como um padre. Recebeu ordenação, ao cumprir todos os requisitos da posse na função foi consagrado. Como um padre, foi ungido. Mesmo que seja um mal padre, mesmo que peque contra a igreja, mesmo que seja um canalha, tal padre, sempre que consagra a hóstia, ela estará definitivamente consagrada, pronta para alimentar as almas que procuram essa benção e consolo, e será recebida como tal. Porque toda consagração teve um ritual, uma celebração, uma sacralização, como um processo. Daí resultar correto o poema: “quando a justiça quer, os peixes voam/ e as aves fazem ninhos no fundo do mar”.
    Nesse compasso, resultam corretas algumas escolhas e soluções para representar a justiça. A imponência dos edifícios, as arcadas, a sobriedade (“..a luz e a sombra/são vultos/que se buscam e que se amam/ loucamente …” – Carlos Nejar), e a disposição do mobiliário na sala de audiência. Não há lugar para sanidade, só para o imaginário.
    Assim, o cidadão, ao chegar ao tribunal já se sentirá culpado, para, quando sair, mesmo frustrado, saia consolado.
    Um abraço sincero – Sidney.

  2. Anônimo 3 de agosto de 2011 - 00:20 #

    (continuo…)
    Falei muito e não cheguei a lugar algum. Procuro, então, retomar o caminho e voltar a Josef K, que descobre no desenrolar do processo que a superioridade que julgava ter, (de cidadão de direitos protegido pelo Estado), é apenas uma ilusão. Ele aceita, por fim, a sentença pronunciada por um padre (novamente a metáfora), para que ele compreenda que a superioridade de um tribunal não deve ser pensada no sentido da razão, mas sim, como resultado de um processo imaginário que fala ao subconsciente. Nesse processo, a realidade surge como ingrediente supérfluo.
    “Uma caixa bem na praça, uma caixa bem quadradinha/ Uma caixa, outra caixa, todas elas iguaizinhas/ Uma verde, outra rosa e uma bem amarelinha/ Todas elas feitas de tic tac, todas elas iguaizinhas/ As pessoas dessas casas vão todas pra universidade/ Onde entram em caixinhas quadradinhas iguaizinhas/ Saem doutores, advogados, banqueiros de bons negócios/ Todos eles feitos de tic tac, todos, todos iguaizinhos/ Jogam golf, jogam pólo, bebendo um bom martini dry/ Todos têm lindos filhinhos bonequinhos engomadinhos/ As crianças vão pra escola, depois pra universidade/ Onde entram em caixinhas e saem todas iguaizinhas/ Os rapazes ficam ricos e formam uma família/ Todos eles em caixinhas, em casinhas iguaizinhas/ Uma verde, outra rosa e outra bem amarelinha/ E são todas feitas de tic tac, todas, todas iguaizinhas” (“Boxes” – Nara Leão).
    Não é sem sentido que o processo seja um arquivo “quadradinho”,guardado em caixas “quadradinhas”, desenvolvidos em salas “quadradinhas”, com mobiliários “quadradinhos”, tudo certinho, arrumadinho. Se assim não for, a realidade (sempre indisciplinada), pode escapulir e fugir do palácio de espelhos onde todos se tornam excelências.
    Tudo é simbolismo, tudo faz parte da linguagem, da comunicação, entre pessoas, e, como somos iguais aos lobos, é integrante do diálogo discreto e subliminar (mas não despido de emoções), entre os fortes e os fracos.
    Enfim, toda esta conversa para chegar ao simbolismo da caixa. Que é um símbolo feminino, alegoria ou metáfora de “fraco”, “frágil”. E que guarda coisas que podem ser desconhecidas e profundas, como a Caixa de Pandora. É o medo que nos faz manter a caixa fechada. É o medo que mantêm ainda a inoportuna e injusta disposição de móveis na sala da audiência. Medo do novo. Daquilo que desconhecemos e que poderá trazer a pestilência, maldição e o oculto. Mas não se esqueçam! A caixa guarda, também, a Esperança. Que, por mais que demore, sempre vem à luz um dia.

  3. adriano 15 de dezembro de 2011 - 00:02 #

    Caro professor Marcelo,

    obrigado pela dica do artigo. Será de grande valia para mim. Grande abraço. Adriano, São Luís.