….projeto do CP e o jogo dos 7 erros…. (1)

 

(1) Prisionalização e
seletividade

 

O principal defeito do
sistema penal brasileiro não é a impunidade –mas a seletividade. Faltam vagas
para a extensa população carcerária, que cresce a cada dia –mas não há
pluralidade de classes nas celas.

Elaborar um Código Penal
significa, em primeiro lugar, ter em mente este problema, bem ainda as
consequências da força do instrumento que é. Como a experiência tem nos
mostrado, enrijecer o sistema penal em busca de nova clientela dificilmente
resolve o problema da seletividade, pois os princípios do rigor, mais hora,
menos hora, acabam sendo replicados também aos mais vulneráveis que contam com
o outro lado da seletividade –a maior fiscalização e a menor possibilidade de
defesa.

Só a diminuição do direito
penal permite reduzir o impacto gravoso do Estado sobre a população mais
carente. Mas em alguns momentos, o candidato a legislador parece agir com
alguma espécie de privação de sentidos. Ou não consegue compreender o caráter
nocivo do direito penal ou, premido pela expectativa social que quer afagar,
não consegue se comportar de acordo com essa compreensão.

Assim, em que pese visíveis
esforços em um sentido de retração da prisionalização (reconheça-se, por
exemplo, em certas normas da parte geral e na redução de pena de tipos como
furto e roubo), são estes mais tímidos do que poderiam e em regra acompanhados
de concessões que, se não os esvaziam de todo, buscam compensações em outros
cantos, como a dizer: se eu baixo aqui, tenho de aumentar ali. Mais um reflexo
da propalada falta de ideologia.

É o caso, por exemplo, da
tentativa.

Estranhamente inserido na
Parte Geral, dispositivo sobre tentativa de crimes patrimoniais refuta
interpretação civilista que vem ganhando terreno na jurisprudência a partir de
decisões dos tribunais superiores: nos
crimes contra o patrimônio, a inversão da posse do bem não caracteriza por si
só, a consumação do delito
(art. 24, § único).

Mas a exposição de motivos
se apressou em dizer, ao mesmo tempo, que não
se preconizou a adoção do ponto de vista rival, segundo o qual apenas da posse
‘mansa e pacífica’ adviria o aperfeiçoamento do tipo penal
, fulminando, por
uma espécie de interpretação quase-autêntica a leitura mais tradicional do
instituto. Não se sabe bem ao certo aonde o legislador procurou chegar, então.

O Código reconhece, enfim, o
princípio da insignificância, trazendo à lei critérios que vem sendo utilizados
pela jurisprudência do STF. Pela imensidão de insignificâncias que a redação
exige (mínima ofensividade da conduta,
reduzidíssimo grau de reprovabilidade,
inexpressividade da lesão) muito provavelmente
vai levar o intérprete que naturalmente o exclui por falta de previsão a
exclui-lo por ausência de seus requisitos –e ainda pode constranger os que já o
aplicam. Não à toa, o infeliz exemplo trazido pela Exposição de Motivos foi justamente
a do furto de alfinete

Paradoxalmente, no âmbito
dos crimes tributários, o princípio da insignificância é mais bem tratado: não há crime se o valor correspondente à
lesão for inferior àquele usado pela Fazenda Pública para a execução fiscal

(art. 348, §8º).

Aqui, não se preocupa mais
com a mínima ofensividade da conduta ou com o reduzidíssimo grau de reprovabilidade.
Basta o valor. Ah, a seletividade…

O projeto define, na esteira
da jurisprudência do STF, os limites dos antecedentes
criminais
, para afastar a inconstitucional aplicação de processos em
andamento ou condenações recorríveis, e ainda estabelece a caducidade dos maus antecedentes, nos mesmos padrões da
reincidência.

Mas de outra parte,
transfere os antecedentes das circunstâncias judiciais para o status de
circunstância agravante (de aplicação obrigatória).

Ao mesmo tempo em que permite
que o juiz possa desconsiderar a
reincidência quando o condenado já tiver cumprido a pena pelo crime anterior e
as atuais condições pessoais sejam favoráveis à ressocialização
(art. 79
§único), impõe que essa mesma condenação seja utilizada como circunstância
agravante (art. 77, II).

O projeto permite que a
circunstância atenuante possa levar à fixação da pena-base abaixo do mínimo
(quando houver aplicação de uma causa de aumento, art. 84, §3º) –todavia, esvazia
a própria circunstância atenuante ao extrair a menoridade relativa de suas
causas, além de levar a idade do idoso atenuado a setenta e cinco (em franca
contradição, aliás, com a redução dos prazos prescricionais, em que permanecem
íntegras a influência da menoridade e da idade de setenta anos, art. 115).

Permite, enfim, o Código que
o juiz excepcionalmente diminua a pena em
virtude das circunstâncias do fato e consequências para o réu
, mas talvez
em face de um constrangimento ao fazê-lo, os autores inauguram uma fração
abaixo de seu mínimo tradicional: 1/12!

Aliam-se a esses
dispositivos benéficos ma non troppo¸
a redução da pena de furto e roubo –também de uma forma constrangida.

O furto simples passa a ter
pena mínima de seis meses. Diferentemente de uma plêiade de tipos em que os
padrões se repetem no Código entre 6 meses e dois anos, neste caso, a timidez
levou os autores a fixarem três anos como máxima, com o propósito inescondível
de impedir que o delito possa ser inserido entre os de menor potencialidade ofensiva –onde de fato deveria estar.

Para não perder a mão apenas
na entrega, o projeto incorpora à extensão da coisa móvel, o sinal de televisão a cabo ou de internet e item assemelhado que tenha
valor econômico
–resolvendo, de forma mais gravosa antigo dissenso
jurisprudencial.

E, pior, abre mão do próprio
sentido de crime contra o patrimônio,
ao inserir uma inusitada equiparação à coisa móvel do documento de identificação pessoal. O documento jamais deixou de
ser coisa móvel –sua subtração era atípica apenas pela ausência de valor
patrimonial relevante, o que o dispositivo penal ontologicamente não altera.

As figuras do furto
aumentado ainda se inserem entre aquelas cuja pena não ultrapassa um ano, o que
proporciona consequências positivas (ampliando o campo de incidência da
suspensão processual), mas o projeto continua se rendendo a maior gravidade do furto de veículo automotor com a finalidade
de transportá-lo para outro Estado
(resquício vivo da legislação de
emergência que procura combater a nova criminalidade com aumento de pena)
–desbalanceando a tutela, por exemplo, em relação ao furto à residência.

Reduz também a pena do roubo
ao patamar de três a seis anos e corretamente insere o sequestro relâmpago na mesma categoria (eliminando a desproporção
criada por outra lei de emergência penal).

Cria o roubo privilegiado (sem violência real, quando a coisa subtraída
for de pequeno valor e o meio empregado inidôneo para ofender a integridade da
vítima
), em que inexiste violência e a ameaça se faz sem emprego efetivo de
arma (por exemplo nas hipóteses de simulação e simulacro) –mas abre a porta
para sua não aplicação ao exigir que também não seja causado à vítima um impreciso
 dano psicológico relevante.

A contradição é manifesta
entre o critério objetivo da
lesividade da ameaça (meio empregado for
inidôneo para ofender a integridade da vítima
) e a concessão ao critério
subjetivo –que no cotidiano forense pode reduzir enormemente a incidência.

Sua figura qualificada
mantém-se no patamar antigo do roubo simples –mas a timidez mais uma vez evita
excluir-se da hipótese aumentada o concurso
de duas ou mais pessoas
que, equiparado desproporcionalmente ao emprego de
arma, é causador frequente de injustiças.

Avanço considerável, e com
enorme atraso, é tratar crimes patrimoniais sem violência como sujeitos à
representação. O projeto agrega a reparação do dano como forma de extinção da
punibilidade –mas sem olvidar o senão de exigir que a vítima antes aceite.

No entanto, todos esses
avanços contidos, essa liberalidade constrangida, essa entrega receosa, podem
resultar em nada diante das regras que tornam, ao mesmo tempo, mais rigoroso o
sistema progressivo de cumprimento das penas –provocando maior encarceramento.

É certo que a lei passa a
permitir a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de
direitos em caso de violência ou grave ameaça, quando a pena se limita a dois
anos (art. 61, II, b), mas, em contrapartida, veda o ingresso no regime aberto para
crimes com violência ou grave ameaça de 2 até 4 anos (art. 49, III, em claro
retrocesso com o panorama atual).

E ainda cria outros padrões
para a progressão de regime (art. 47): um terço da pena para o condenado reincidente,
se o crime for cometido com violência ou grave ameaça ou a genérica hipótese de
crime que causa grave lesão à sociedade
(que consegue a proeza de tornar indefinido o prazo para a progressão, com as
sensíveis consequências que a insegurança provoca no sistema penitenciário).

Não bastasse dobrar o
cumprimento da pena nos regime mais rigorosos para a progressão, o projeto
ainda estabelece que o cumprimento será de ½ da metade da pena para os casos de
reincidência em crime violento ou no tal crime
que tiver causado grave lesão à sociedade
.

Pródigo em tantos outros
artigos em estabelecer desnecessárias balizas para a fixação da pena pelo juiz,
ou superar conflitos jurisprudenciais, aqui o pretenso legislador relega ao
critério do magistrado, tornando de livre interpretação a grave lesão à sociedade. Deixa de cumprir justamente o papel
destinado ao controle formalizado do direito penal, que é o de estabelecer
limites.

Não bastasse o aumento
expressivo na carcerização, a ser provocado pelo endurecimento do regime
progressivo, o projeto ressuscita o exame criminológico para a progressão (que
historicamente sempre foi um entrave para a progressão) e tornam mais rigorosos
os requisitos para a saída temporária. Sem deixar de anotar que o projeto só se
refere à monitoração eletrônica no
regime aberto (escancarando o ânimo que já se vislumbrava na lei específica,
que é o de levar um pouco de cadeia à liberdade e não o reverso).

Enfim, curva-se à crítica da
“opinião pública” no sentido de que as “penas não são cumpridas até o fim” –e
para evitar superposição de benefícios (como se estes realmente fossem nocivos),
abandona os tradicionais institutos da suspensão condicional da pena e do
livramento condicional.

Last,
but not least,
o projeto retira a multa das penas
restritivas de direito, proibindo, em regra, a substituição da pena privativa
por ela, e a devolve à execução pelo Ministério Público, supostamente porque,
consoante a exposição de motivos, a execução pela Fazenda Pública como dívida
de valor não deu bom resultado.

Mas o propósito vai além,
porque a lei repristina também a conversão da multa em prisão. Não para todos,
bem entendido. Para o solvente, ela se transforma em perda de bens e valores;
para o insolvente em prestação de serviços que, descumprida, leva à prisão.

Ah, a seletividade…

 

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Um comentário sobre ….projeto do CP e o jogo dos 7 erros…. (1)

  1. Euler 15 de setembro de 2012 - 19:50 #

    Trabalho como defensor em uma unidade prisional destinada a presos provisório.

    Entendo que a reincidência deve sim aumentar a fração do lapso temporal da progressão no regime de pena.

    Já o livramento condicional penso que não deveria existir mesmo. Já temos o indulto natalino que cumpre melhor a função de ressocialização do preso.

    Finalmente, a conduta carcerária, principalmente com desempenho de atividades de tabalho e estudo, devem constituir a base de todos benefícios aos presos. Para isso, as unidades penais devem ser repensadas.