….mídia e justiça: democracia interrompida e crescimento do estado policial…..

Uma
combinação explosiva capaz de fulminar direitos que se dizia tutelar

 

 

 

Em
linhas gerais, este é o texto-base para a palestra de mesmo nome proferida no
Seminário Resistência Democrática, Diálogos entre Política e Justiça, realizado
pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), coordenado
pelo juiz Rubens Casara, entre os dias 14 e 16 de maio de 2013, na cidade do
Rio de Janeiro.

 

Nesta
mesa, presidida pela Jornalista Cecília Oliveira, também palestraram o
jornalista Dênis de Moraes e o professor e juiz aposentado Luiz Flávio Gomes.

 

O
vídeo da palestra pode ser consultado aqui

 

 

Mídia e Justiça: a
democracia interrompida e o crescimento do estado policial

 

 

 

 

 

A democracia
interrompida

 

A
primeira observação que se pode fazer em um debate sobre mídia e justiça é que
juntos essas instituições compõem um quadro que mostra, com maior nitidez, o
quanto o processo de reconstrução da democracia ficou incompleto, ou melhor
interrompido.

 

Se
algo por assim dizer lhes aproxima, nessa relação quase sempre tumultuada, é
justamente o fato de que os arquivos da redemocratização não foram
suficientemente instalados nestes programas.

 

Seja
porque entendemos que o fim da censura e a consigna da liberdade de expressão seriam
suficientes para uma ‘imprensa livre no estado democrático’, seja porque por
temor ou ignorância, simplesmente nos omitimos quanto à democratização do Poder
Judiciário –esperando, de uma forma pueril, que ele pudesse ser bafejado pelos
ares da democracia, sem alterações significativas na sua estrutura.

 

Assim,
tivemos um direito de família que se democratizou com a incorporação da
igualdade e da ótica da solidariedade sobre o patrimônio e o patriarcalismo, a
expressão da função social da propriedade constitucionalizada, a revigoração de
relações trabalhistas e o respeito à sindicalização e uma nova visão na
psiquiatria, incorporando ideais antimanicomiais e a consideração do doente
mental como sujeito de direitos, o mesmo, aliás, que se pretendeu fazer com o
réu, na expressão de um processo como garantia.

 

Mas
tudo isso, supondo que uma estrutura hierarquizada, formalista, conservadora e
fundada no respeito à tradição, como o Judiciário, seria capaz de lidar imediatamente
com este rol de novos equipamentos, ou reconhecer uma visão de sociedade que
rapidamente mudava a face. Não foi.

 

Não
só o ancièn regime não tem dado conta
de absorver a guinada jurídica em direção à dignidade humana, como as novas
gerações de juízes continuaram a ser expostas às instâncias fortemente
verticalizadas do Judiciário –por intermédio das quais o novo ou o diferente é
quase sempre discriminado ou preterido. E vêm, assim, sendo estimuladas pela
estrutura a repetir as interpretações tradicionais, atrasando em décadas a
incorporação dos direitos.

 

No
âmbito da imprensa, por fraqueza ou arrogância, acreditamos que o laissez faire
seria capaz de nos levar à consagração da liberdade de expressão, sem nos dar
conta de que uma aguda concentração econômica representava mais um obstáculo do
que um trampolim ao pluralismo que lhe dá base. Ou seja, uma situação que muitos
podem falar, mas pouquíssimos são ouvidos.

 

Um
duplo paradoxo, portanto, entre uma liberdade de expressão que sufoca o
pluralismo e uma aparelhagem de direitos humanos por quem não é ensinado,
treinado ou estimulado a usar.

 

Mas
se isoladamente a democracia interrompida pode ter causado ruídos ao exercício
dos direitos com a concentração da comunicação e a hierarquia do Judiciário, há
muitos pontos que essas perversões se imbricam e provocam o que parecia ser até
improvável. Sendo arenoso o terreno quando mídia e justiça se desencontram e
falam línguas distintas e inconciliáveis (afinal, o maior receio do juiz na
atualidade é a mídia, e de certa forma, o maior medo da imprensa é o juiz), a
situação consegue ser pior quando chegam à mesma conclusão.

 

Uma
combinação explosiva capaz de fulminar direitos que se pretendia tutelar.

 

 

O conflito enviesado
de gerações

 

 

Quando
ingressei na carreira da Magistratura, tinha a impressão de que os juízes mais
antigos eram mais severos e mais inflexíveis, dura lex sed lex, por conta de anos de ensino e de tradição
positivista e um respeito mais do que sagrado às formas; ao passo que os juízes
novos, frutos de experiências mais recentes da doutrina, relativizando o normativismo,
por intermédio dos ares que se intrometiam com a Constituição, tinham mais
maleabilidade.

 

Vinte
e três anos depois, com o caminho percorrido, tenho a impressão inversa: de que
justamente os mais novos juízes são ainda mais rigorosos e menos garantistas, e
atualmente invertem esse conflito de gerações.

 

Considerando
que esse foi mais ou menos o tempo de vida da Constituição cidadã seria mesmo o
caso de entender o que, exatamente, falhou.

 

Parte
da resposta pode ser dada pela própria falta de democracia interna no
Judiciário em que os novos se sentem encorajados a repetir os antigos, uma vez
que as cúpulas formadas pela gerontocraria, encarnam ao mesmo tempo a
jurisprudência dos tribunais e a sua gerência política, criando um horizonte
nada propício a transformações.

 

Mas
parte da resposta pode estar também na insuficiência da democratização da
mídia.

 

Uma
pista pode ser encontrada em um tradicional adágio do meio jurídico, que vem funcionando
como uma espécie de referência: ‘o juiz é um homem do seu tempo’.

 

Por
muitos anos, eu mesmo costumava me perguntar, após cada decisão: será que estou
sendo um homem do meu tempo?

 

Para
mim, a expressão tinha o sentido de um juiz que, além de conhecer o direito,
também estava aberto à sociedade, não era cego aos problemas vividos e se obrigava
a conhecer o novo.

 

Mas,
analisando cada uma das decisões em que essa expressão aparecia, fui me dando
conta de que, em regra, ela costumava abrigar, com uma face hipocritamente simpática
ou falsamente vanguardista, a expressão de um juízo essencialmente repressor
–em especial no campo penal.

 

O
juiz, homem de seu tempo, servia como álibi aos avanços e garantias que a nova
Constituição projetava. Sim tínhamos novos direitos e garantias, mas um juiz, que
é “homem de seu tempo”, saberia reconhecer a oportunidade ou a inconveniência
de utilizá-los.

 

A
perversão que o adágio tomou é mais ou menos como o comentário recente de um
juiz, famoso por certas prisões e condenações, ao aplaudir o STF no mensalão: decisão
boa, porque além da Constituição, o tribunal também prestou atenção à
“realidade”. Foi, digamos assim, homem de seu tempo…

 

Para
além da nossa capacidade de compreensão dos novos institutos ou de uma leitura
garantista dos velhos códigos empoeirados, o moderno seria integrar-se ao “nosso
tempo” –o que, na prática, significa, quase sempre, afastar essa leitura por
outra supostamente mais atual, ou seja, trocar a Constituição pela “realidade”,
o Código Penal, pelas telas da TV.

 

Enquanto
procuramos disputar, dentro do meio jurídico, as principais interpretações dos
institutos, caímos na real de que entender o direito não basta para superar o
predomínio das visões draconianas. Porque elas estão, fundamentalmente, além do
direito (ou, mais corretamente, aquém dele).

 

A
questão chave passa a ser: qual é o nosso tempo?

 

 

Senso comum: a mídia
e os axiomas subjurídicos

 

 

E
é aí que o discurso dominante na mídia exerce o seu papel de forma mais
intensa.

 

O
retrato do nosso tempo, tanto mais na área do direito penal, é descrito como um
tempo de violência, de alta criminalidade e, fundamentalmente, de muita
impunidade.

 

Poucos
vão nos dizer que é o tempo de prisões excessivas, superlotadas e seletivas, de
violências que comprimem a liberdade, de direitos prometidos e não alcançados,
de desigualdades persistentes. Isso não vai ser manchete do Jornal Nacional nem
capa da Veja. Salvo se for para mostrar a superlotação de cadeias e vender
prisões para a iniciativa privada.

 

O
juiz, homem de seu tempo, segundo a visão mais comumente lavrada pela grande
mídia, se impõe como um juiz que reconhece a fragilidade do sistema repressor e
se assume em uma função que de toda a forma não é sua, a de garantir não os
direitos fundamentais como lhe compete, mas a segurança pública. Põe em seus
ombros uma cruz que não só não precisa, como não deve e, enfim, não pode carregar.

 

O
juiz, homem do seu tempo, é um juiz que combate
a criminalidade
e se arrosta contra a impunidade,
ou seja, um juiz que não apenas assume um lado no conflito que deve julgar,
como vira ele mesmo um fator de supressão das garantias que lhe era devido
tutelar.

 

É
essa compreensão da realidade, ou do “tempo em que vivemos” que explode sobre o
intérprete da lei com muito mais eficácia e contundência do que qualquer
manual, com uma dupla função: não apenas torna a repressão como algo lógico e
insuperável, como ainda moderna e de vanguarda.

 

O
garantismo se torna não apenas minoritário, mas arcaico, ultrapassado, quase pernicioso.

 

Mais
do que a produção de subjetividades de que a mídia é capaz, com um discurso
praticamente monopolista, estimulando a criação de culpas (por exemplo, quando privilegia
a versão única de cada evento, explorando os detalhes mais trágicos, levando o
sensacionalismo a buscar o elemento mais vingativo e cruel de cada indivíduo), é
de se preocupar com a produção das objetividades –as verdades que se inserem no
discurso jurídico de tal forma que se tornam praticamente dogmas.

 

Essas
interpretações, que se podem dizer, subjurídicas, não encontram dignidade no
direito, mas se transformam em axiomas que motivam expressivas decisões
judiciais, e respondem, enfim, por parcela significativa da população
carcerária.

 

Roubo é um crime que
desassossega a sociedade e deve ser cumprido em regime fechado.

 

Nada
mais ‘homem de seu tempo’ do que vincular a pena de um crime ao ‘desassossego
da sociedade’, senso comum derivado não apenas de impressões pessoais, mas do
conjunto de informações transmitidas e repassadas pela mídia.

 

Esse
axioma não tem amparo legal, eis que a fixação de regime se impõe pelo volume
de pena ou por características pessoais do agente, ou no máximo com uma identificação
casuística –jamais genérica.

 

E
tampouco tem amparo na jurisprudência superior, uma vez que o STF já até sumulou
a impossibilidade de impor regime mais severo com base apenas na ‘opinião
abstrata do julgador sobre a gravidade do crime’.

 

Todavia,
é a expressiva maioria das decisões de quem fornece a palavra que, no cotidiano
das penas e prisões, tende a ser a final.

 

O tráfico de
entorpecentes é crime grave que corrói a sociedade e não permite liberdade
provisória, cumprimento de pena em meio aberto ou a substituição por restritiva
de direitos.

 

A
tônica enviesada do tráfico de entorpecentes como um dos crimes mais graves do
ordenamento, nasceu das entranhas da Constituição que o equiparou ao hediondo
que ainda nem existia.

 

A
guerra contra as drogas é a mãe de todas as batalhas inúteis.

 

A
jurisprudência dos tribunais superiores foi paulatinamente considerando
inconstitucionais todas as restrições genéricas, como a que determinava o
cumprimento de pena integralmente em regime fechado, proibia a liberdade
provisória e, enfim, a restritiva de direitos.

 

Mesmo
depois disso, o axioma subjurídico continua permeando porções significativas da
jurisprudência dos estados, provocando uma plêiade de condenações e de prisões
provisórias que acabam se tornando definitivas.

 

Afinal,
a nova interpretação restritiva aos habeas-corpus faz com que a jurisprudência
dos tribunais superiores só sejam acessíveis aos réus soltos (que podem esperá-la);
porque os presos cumprirão as penas praticamente integrais antes de poderem
usufruir dela.

 

Uma
espécie de apartheid processual.

 

No
caso do tráfico, como sabemos, a seletividade é ainda mais profunda, pois o
grosso da vigilância policial (que resulta nas denúncias) se dirige ao
microtráfico, das vielas e favelas; e o axioma subjurídico atinge de chofre o
juízo da infância e juventude, pervertendo a regra de que a internação do
primário só pode ser justificada diante da ocorrência de ato infracional com violência
ou grave ameaça.

 

Estatísticas
indicam que quase 50% dos adolescentes internados em SP lá estão por tráfico de
entorpecentes.

 

O
mais feroz dos axiomas subjurídicos que, derivados do senso comum, suplanta o
ordenamento é o que diz:

 

O inocente jamais se
cala.

 

Não
se pode dizer que esta seja uma interpretação nova ou vanguardista, já que derivada
de um quem cala consente muito antigo;
surpreendente é a sua persistência mesmo depois da incorporação explícita de garantias
constitucionais e infraconstitucionais em sentido contrário.

 

Muitas
condenações ainda são mantidas sob a alegação que o indiciado se calou na
delegacia –como o inocente não se cala….

 

O
axioma aí não é apenas subjurídico, mas antijurídico, pois implode em uma só
frase nada menos que dois princípios constitucionais: o direito ao silêncio e a
presunção da inocência.

 

Representa
a consagração, muito moderna aliás, do não-processo: se o silêncio do indiciado
na prisão em flagrante já é prova de sua culpa, qual a relevância do processo?

 

E
da mesma forma, acórdão do STF que desqualifica a aplicação da confissão como
circunstância atenuante, nos casos de prisão em flagrante, porque aí já se tem
como certa a autoria. Para que o
processo, então?

 

Ou
a interpretação que vem surgindo de aumentar a pena do réu porque teria mentido….
Se o silêncio é culpa, e a negação é pena, sobra só confissão. Mais uma vez se
justifica a pergunta: para que o processo, então, com uma condenação tão
anunciada.

 

Mas
o senso comum e a influência dessa realidade
transmitida
vai fulminando tantos outros conceitos jurídicos cuja corrosão
implica, a médio prazo, o esvaziamento de quaisquer limites do poder punitivo.
E da própria função do juiz. Mais que uma irresponsabilidade, uma política
suicida.

 

A
ideia de pena como limite da culpabilidade vai se pervertendo.

 

Primeiro
com o esfacelamento gradual do sistema progressivo.

 

A
LCH, vigente por mais de quinze anos, fulminou explicitamente a progressão e
provocou a superlotação carcerária que vivenciamos hoje.

 

O
senso comum já dá por vencido que pena, pena mesmo, é só o tempo de cumprimento
em regime fechado (v.g. a manchete pós sentença do Carandiru: Policiais
condenados cumprirão só 3% das penas).

 

Lance
mais expressivo desse esvaziamento do sentido da pena foi a admissão, praticamente
expressa, pelo STF, do aumento da pena-base para fugir aos efeitos da
prescrição.

 

A
prescrição, instituto formado para limitar no tempo o poder punitivo, ou seja, uma
medida de compressão do poder, volta-se como instrumento regressivo: quanto
mais tempo o Estado demorar para julgar, mais pena deverá o réu cumprir. Poucas
perversões de princípios se tornam tão explícitas.

 

Nessa
onda, segue-se um ataque especulativo, com a consagração midiática do dolo
eventual para contornar situações claramente culposas de grande repercussão.

 

E,
por fim, a própria ideia de prova, também flexibilizada no julgamento do Supremo,
no contrabando de uma teoria da ação.

 

Em resumo, é o direito
penal que está perdendo o domínio do fato.

 

Não
se o disputa mais no Parlamento ou na academia.

 

A
disputa agora é na opinião pública, porque esta repercute diretamente nas
decisões que viram axiomas e depois subjurisprudências.

 

E
a forma sedutora como o discurso invade o jurídico é a via da ‘legitimidade popular’.
Tem se tornado cada vez mais comum a pesquisa de opinião sobre o resultado de
um julgamento, antes que ele se inicie.

 

E
alguns juízes ou tribunais se animam a consagrar equivocadamente a publicidade
ou transparência, proporcionando espetáculos midiáticos, que só ajudam a introduzir
a “opinião pública” para dentro das decisões.

 

A
tentação de estar com a maioria –ou, pior, o receio de nadar contra a maré-
contrasta fortemente com a natureza contramajoritária da função do juiz –o
julgamento vai sendo gradualmente substituído pela enquete, uma espécie formalizada
de você decide.

 

A
legitimidade direta se traduz na recuperação da tática Volkisch, muito
empregada no nazismo: direitos são tratados empecilhos, uma análise imparcial
tão criminosa quanto o ilícito, tudo o que não faz parte da correia da
condenação sumária é traduzida como defesa da impunidade.

 

Combater
a impunidade, aliás, virou a grande chave para a popularidade e o acesso
ilimitado à mídia, ao mesmo tempo o álibi para a reconstrução do estado
policial.

 

Ou,
como diz o presidente do STF, que trata os juízes como pro-impunidade e
promotores como rebeldes contra o status quo.

 

Não
é muito difícil saber onde tudo isso desagua:

 

Informes sugeriam à população que o
sistema legal era irremediavelmente fraco contra o crime.

As novas propostas favoreciam
julgamentos mais rápidos e a redução das proteções legais.

Os cidadãos foram informados que o
princípio liberal de “nenhum crime sem uma lei” (nullum crimen sine lege) foi
trocado para “nenhum crime sem uma punição” (nullum crimen sine poena). Esse
slogan tinha o objetivo de exercer apelo sobre aqueles que estavam fartos pelo
fato de o sistema judicial dar muitos direitos a perpetradores de crimes.

O sinal era impossível de ser ignorado:
os tribunais ficariam mais “radicais” ou simplesmente se tornariam supérfluos.
(Apoiando
Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista

 

em que
Robert Gelatelly explica como o endurecimento
penal foi mecanismo de legitimação da ditadura nazista.

 

 

A consagração da
repressão como última esperança da civilização

 

 

Zaffaroni
já havia nos advertido da sobrevida da Idade Média.

 

O
Malleus Maleficarum, manual de martírio às bruxas continha, na sua estrutura, a
gênese de grande parte desse salvacionismo Lei e Ordem.

 

A
criminalidade que se expande sem limites, o inimigo que precisa ser abatido
frontalmente, o remédio amargo que é o único necessário, a conduta nociva de
quem não adere ao punitivismo.

 

Tudo
já estava lá desde 1484.

 

Mas
o neopunitivismo tem-se vitaminado nas últimas décadas nos escombros dos
estados de bem-estar. A mídia é o seu mais eficaz portador.

 

Os
antigos jornais espreme-sangue não são mais discriminados como lixo. Suas
matérias invadiram os espaços e publicações nobres, que destacam generosas porções
de suas edições para os crimes.

 

Os
programas policialescos exageram na representação, mas o sensacionalismo dos
telejornais noturnos não se apartam muito deles. O prurido que havia em mostrar imagens fortes desapareceu completamente
e as empresas de comunicação lidam com a estratégia de galvanizar, primeiro o
sentimento, depois a opinião, acerca de uma multidão interminável de crimes, que
repetem todos os dias.

 

Estudo
de Alex Niche Teixeira sobre programas policiais que retratam situações reais de
crimes concluiu:

 

“Estes programas
produzem sua própria demanda por mais e mais punição”

“Constroem uma forma
de cidadania orientada pela desconfiança e pelo medo”

“No âmbito do
controle criminal, este é o período em que tanto nos EUA como na Inglaterra, se
verifica uma forte tendência de reorientação das políticas penais, as quais
configuram um endurecimento da ação punitiva do Estado” (“Violência e
Cidadania, Práticas Sociológicas e Compromissos Sociais
”, editado pela UFRGS e Ed.
Sulina, organizado por José Vicente Tavares dos Santos, Alex Niche Teixeira e
Maurício Russo)

 

situação
esta, que não é nada diversa da atual realidade brasileira.

 

O
neopunitivismo não está relacionado com estatísticas (em certos casos, como os
homicídios em SP, é ele precisamente quem produz as elevações). Tem a ver com
os objetivos do mercado, este novo Leviatã, de não mais explodir simplesmente o
Estado, mas sim se apropriar dele.

 

Lois
Wacquant nos explica como este novo punitivismo usa a mão direita forte para compensar
o enfraquecimento da mão esquerda no estado social.

 

Jonathan
Simon atribui ao movimento a ideia de governança através do crime, pelo qual a
sociedade norte-americana trocou a figura central do cidadão e consumidor para
a da vítima, inclusive pela maior facilidade de lidar com expectativas
populares mais alcançáveis (e baratas) do que a recuperação do new deal.

 

O
endurecimento penal é, enfim, o populismo de direita.

 

Nesta
governança contra o crime, revela o estudo de Simon, cresce vertiginosamente o
poder do Ministério Público (fortemente atuante na política norte-americana) ao
mesmo tempo em que enfraquece o do juiz –cujo desprestígio é crescente,
especialmente pela ideia de que a neutralidade equivale à impunidade.

 


os juízes-promotores se salvam.

 

A
mídia não está nesta barca à toa. Nem apenas por uns trocados.

 

Mas
para entender isso é preciso se desprender da visão idílica do jornalista
liberal em busca da verdade contra o poder e os poderosos, como um Quixote
redivivo. Isso é raridade.

 

A
grande mídia é hoje cada vez mais concentrada e não apenas é financiada pelas,
mas é em si mesma, uma grande corporação.

 

Embora
clame por ser representante do “interesse público” ou porta-voz da “opinião
pública”, jamais deixa de ser empresária atuante na defesa do conjunto de
valores de classe.

 

E,
como tal, realiza com frequência, uma crítica exacerbada ao setor público, poupando quase sempre o privado
(mesmo quando poderoso, como bancos).

 

Tudo que é do Estado é errado, custoso,
opressivo, ineficiente e pesado -salvo o direito penal, que, ao contrário, é
tolerante, fraco, permissivo, frouxo.

 

Busca-se quase sempre salvar o indivíduo
do Estado, e ao mesmo tempo, a sociedade do indivíduo (através da ideia de cidadania
para uns e não para outros).

 

Não à toa, adere ao discurso
“anticorrupção”, quando dirigido aos agentes públicos, mas nunca aos corruptores,
que em grande parte a financiam; patrocina atos contra a corrupção, mas não aqueles
que questionam o próprio sistema (como os indignados, que esconde).

 

Extrapola a crítica feroz à toda e
qualquer autoridade pública, mas toma palavras do delegado ou promotor como
verdades quase absolutas.

 

O
sensacionalismo não se limita a um mecanismo de varejo para aumento de vendas
–mas como defesa do tônus criminal que é inerente à proposta neoliberal.

 


uma enorme distância do novo do velho liberalismo, com consequências
profundamente diversas na estrutura do Estado, e em especial na área penal.

 

A
revolução francesa permitiu o crescimento da burguesia, servindo a visão
iluminista como importante limitador do poder do Estado.

 

Mas
no atual momento, não há classe a emergir entre as grandes corporações, e sim o
interesse de que os vulneráveis jamais se emancipem.

 

Enquanto
o Estado é apropriado pelo mercado, diminuem fortemente os amortecedores
sociais, e aumenta a rigidez penal.

 

O
estado policial assim, se coloca como um contraponto ao estado social.

 

Por
isso que a advertência de Zaffaroni devia ser melhor ouvida em Brasília:

 

O maior risco em nossa região é que os
próprios políticos comprometidos com a restauração dos demolidos estados de
bem-estar, fazendo concessões, acabem por serrar o galho em que estão sentados,
pois a criminologia midiática é parte da tarefa de neutralização de qualquer
tentativa de incorporação de novos estratos sociais
”.

 

O
estado policial combinado com a apropriação pelo mercado vai acabar produzindo
uma terceira capa de autoritarismo, sucedendo ao absolutismo do rei sol e os
fascismos construídos sob a lei: a ditadura sem ditador.

 

 

 

Caminhos da
resistência democrática

 

 

 

Não
há soluções mágicas para impedir ou retroceder este caminho de entronização do
estado policial, porém a resistência democrática pode se dar em várias frentes.

 

Primeiro,
a retomada no processo das democratizações interrompidas, no âmbito das
comunicações e no Judiciário.

 

É
preciso encontrar instrumentos para reequilibrar as vozes, de modo fazer com
que liberdade de expressão volte a ter base no pluralismo, como a

 limitação de controle da propriedade dos meios
de comunicação.

 

Sem
prejuízo de aproveitar os mecanismos informais de pulverização da comunicação,
no qual a Internet certamente é o mais relevante.

 

A
luta pela democratização do Judiciário também deve ser retomada.

 

É
preciso reduzir as oligarquias e o poder de reprodução contínua do mesmo pensar
no Judiciário. Onde existir hierarquia não haverá independência. Onde não
houver independência, não haverá garantismo.

 

Onde
essas resistências se encontram, essas redemocratizações se mesclam, é
justamente na ação que possamos fazer, a partir do direito, na pulverização da informação.

 

Ou,
na recomendação de Zaffaroni, que é ao mesmo tempo um estudioso do Judiciário e
feroz crítico da criminologia midiática: sair dos guetos e deixar o discurso
acadêmico para disputar essa encruzilhada
civilizatória
.

 

Escrever
para o leigo, ocupar o espaço dos meios de comunicação, avançar para produção
de blogs e redes sociais que permitam mostrar as absurdas incoerências do
discurso repressor (p. ex., como o recrudescimento da pena municia facções
criminosas e a redução da maioridade só apaga fogo com querosene). E o
escândalo da seletividade penal, que reproduz tudo, menos justiça.

 

Quando
disputar a academia já não é mais suficiente, é preciso disputar também as
ideias do “nosso tempo”, para impedir o livre trânsito do estado policial.

 

É
difícil disputar este espaço exterior, com TVs, rádios, jornais em sentido
contrário.

 

Mas
o primeiro passo é reconstruir o próprio discurso interno, porque adubos para o
estado policial se encontram onde menos se esperam, como as concessões à
criminalização midiática, a omissão e apatia nas nomeações para STF, o abandono
de habitats importantes para os direitos humanos (como o espaço aberto a Marco
Feliciano) estão a demonstrar.

 

O
livro citado de Jonathan Simon relembra que algumas das leis de referência da
expansão da criminalização foram produzidas em governo e congresso de maioria democrata,
na antevéspera de eleições.

 

Se
serve de alerta para nós, sucumbir ao conservadorismo não evitou em nada as derrotas
eleitorais que vieram.

 

Começa-se
a perder o poder, quando se perde a capacidade de defender as ideias. Que
sejamos capazes de defender as nossas

 
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