STF disse o óbvio. Mas muitas vezes o óbvio deve ser expresso
A matéria que segue é do jornalista Thiago Ansel e foi publicada originalmente no Observatório de Favelas. Falamos sobre o julgamento da ADPF no STF que garantiu a Marcha da Maconha, a vitória da liberdade.
Marcha da Maconha: vitória da liberdade de expressão
Ativistas pró-legalização da maconha e dos direitos humanos comemoraram a decisão unânime do STF (Supremo Tribunal Federal) de liberar a realização de protestos em favor da legalização das drogas. O julgamento é fruto das constantes proibições às Marchas da Maconha em diferentes cidades brasileiras, que levaram a Procuradoria-Geral da República a propor uma ação pela defesa do direito à organização de manifestações favoráveis a descriminalização da erva – até então consideradas atos de apologia ao crime.
Somente em maio deste ano, as marchas foram impedidas de acontecer em cerca de nove capitais brasileiras por decisões judiciais que as interpretaram como criminosas. As proibições fizeram com que, em 21 de maio deste ano, a Marcha da Maconha de São Paulo – na qual participaram em torno de 1.000 pessoas – fosse violentamente reprimida pela Polícia Militar, gerando confrontos na Avenida Paulista e prisão de seis pessoas.
No último dia 15 de junho, oito ministros do Supremo entenderam que as proibições às Marchas ferem o direito constitucional à liberdade de expressão. Durante o julgamento, a Vice Procuradora-Geral da república, Deborah Duprat, defendeu que, no caso da Marcha da Maconha, o dispositivo legal que proíbe a apologia ao crime admite outras interpretações. “A primeira objeção que se faz a essa tese é a superação dessa visão positivista de que os textos são unívocos, de que as palavras se colam às coisas de modo definitivo. Não há mais texto que não possa ou não deva ser lido dentro de um contexto”, disse Duprat, destacando a importância da liberdade de expressão para a efetivação da democracia.
Segundo o Juiz Marcelo Semer, membro da Associação Juízes para a Democracia, a decisão do STF não causa surpresa, justamente porque é garantido pela Constituição o direito à liberdade de expressão. “A decisão é o cúmulo da obviedade e, no entanto, muito importante. Parece claro que o direito à manifestação – que está inscrito como direito fundamental na Constituição – sem necessidade de autorização, não pode ser vedado por qualquer autoridade. Mas fato é que a Marcha da Maconha vinha sendo proibida há anos, sob o pretexto de apologia. Essas proibições levaram a Procuradoria-Geral da República a mover a ação no STF. A Marcha da Maconha faz parte do exercício de um direito constitucional. Em certos momentos, a obviedade deve ser expressa”, explica.
Vitória da democracia
Dois dias depois da histórica decisão do STF, em entrevista a Agência Estado, o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cardeal Raymundo Damasceno, sugeriu que a parcela da sociedade que reprova o uso da maconha organize marchas contra a droga. Na opinião do cardeal, o STF não fez apologia ao uso da maconha, mas autorizou a manifestação favorável a “descriminalização do dependente”.
O líder religioso afirmou que a sociedade deve estar “atenta” e não pode se deixar levar pela posição de um grupo, ainda que este pareça significativo. “As pessoas que se opõem ao uso da droga devem ter uma posição clara e que se manifestem também. Não se trata de manifestar só a favor da descriminalização da maconha, trata-se de, quem é contra a maconha, se manifestar contra”, disse o cardeal.
E não foi só a Igreja que reagiu à decisão do STF. No mesmo dia da declaração do cardeal Damasceno, o Coronel da Reserva Milton da Costa publicou no Blog “Repórter de Crime”, hospedado pelo site do jornal O Globo, um artigo intitulado “A marcha da cocaína também está autorizada”. No texto, da Costa diz que a liberação da Marcha representa grandes riscos à sociedade. “O Supremo Tribunal Federal ao oficializar a autorização para realização das marchas da maconha no país e protestos similares, em nome do princípio maior da liberdade de pensamento e do dispositivo constitucional que garante a todos poderem se reunir pacificamente, independente de autorização, sendo exigido o aviso prévio à autoridade competente, abre, a meu ver, um perigoso precedente para que outras classes de usuários, como os do crack, cocaína, ecstasy e até do oxi também possam usufruir do mesmo direito”, escreve o Coronel.
O sociólogo Renato Cinco, organizador da Marcha, sustenta que drogas como o crack e o oxi, incontestavelmente danosas à saúde, só existem porque, por exemplo, a cocaína – matéria prima de ambas – continua a ser proibida. “Eu sou a favor da legalização do mercado de drogas em geral. Entendo que drogas como o crack só existem porque o mercado de cocaína é ilegal. A cocaína pode ser vendida com uma boa porcentagem de pureza, o que eleva seu preço, restringindo o acesso apenas a quem pode pagar. O crack é cocaína. É a cocaína vendida aos mais miseráveis. Há inclusive outro exemplo histórico: nos Estados Unidos, no período da lei seca, existia uma bebida alcoólica, o que era ‘o crack do álcool’. Era uma bebida com misturas químicas altamente nocivas. Ela deixou 200mil estadunidenses paralíticos. Esta bebida sumiu quando acabou a proibição de bebidas alcoólicas naquele país”, observa Cinco.
A decisão do STF, de fato não se refere exclusivamente ao movimento pela legalização da maconha. Contudo, a marcha não se caracteriza por ser um manifesto pelo uso ou venda da droga, mas pela consideração da possibilidade de a maconha tornar-se legal. Para o Juiz Marcelo Semer proibir o debate é que seria absurdo. “Como se disse no STF, se discutir a supressão de um crime fosse em si um crime, estaríamos petrificados pela lei. Isso seria, em resumo, o fim da política”, conclui Semer.
O fracasso da criminalização das drogas
De acordo com o relatório do Escritório da Organização das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) do ano passado (o relatório 2011 do UNODC será divulgado nesta quinta-feira), mais de 190 milhões de pessoas fizeram uso de maconha ao menos uma vez em 2009. Isto quer dizer que a quantidade de usuários da
O Juiz Marcelo Semer: “se discutir a supressão de um crime fosse em si um crime, estaríamos petrificados pela lei. Isso seria, em resumo, o fim da política”. Foto: Arquivo Pessoaldroga no mundo se compara ao número de habitantes do Brasil. Ainda Segundo dados da ONU, 90% dos usuários de drogas ilícitas são de maconha.
Segundo o sociólogo Renato Cinco, a decisão do STF significou, na verdade, uma vitória de todo povo brasileiro, pois se reafirmou a liberdade de expressão e de opinião. Para Cinco, movimentos como a Marcha da Maconha acontecem porque o povo começa a adotar uma postura crítica em relação ao fracasso das políticas até então adotadas para tratar da questão das drogas. “O Brasil é vanguarda na proibição da maconha. Primeiro pelo racismo contra os escravos que a consumiam inclusive em rituais. Historicamente, isso se transforma: a perseguição não é às drogas em si, mas quando o controle delas é exercido pelos pobres. Eles é que continuam a sofrer com esta repressão”.
No fim de 2009, somavam-se 86mil os presos por tráfico de drogas no país – número que representa o dobro de sentenciados pelo crime em 2006. Na opinião do Juiz Marcelo Semer a repressão policial às drogas é, sem dúvidas, um fracasso. “A criminalização não tem diminuído nem o uso nem o tráfico de entorpecentes, além de ter criado uma série de efeitos colaterais como a superlotação das cadeias e a criação de um exército de mão-de-obra para facções criminosas. Do jeito que a coisa anda, aumentar a criminalização nada mais é do que tentar apagar fogo com querosene. Portanto, é um momento em que esse fracasso da repressão deve abrir espaço para novas ideais. A última coisa que se pode fazer nesse momento é interditar o debate”, adverte o magistrado.
Comentários fechados.