….a cortina de fumaça do proibicionismo…. (Direito no Cinema Brasileiro)

direito no cinema brasileiro

Lançamento da Editora Saraiva, o livro Direito no Cinema Brasileiro foi coordenado por Carmela Grüne, do Jornal Estado de Direito.

Contribuí para a edição com o artigo: “A Cortina de Fumaça do Proibicionismo”, abaixo parcialmente transcrito, com base no filme Cortina de Fumaça, do diretor Rodrigo Mac Niven.

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                                                A CORTINA DE FUMAÇA DO PROIBICIONISMO

 

“Há uma parte ignorante do nosso cérebro que os demagogos utilizam, às vezes propositadamente outras inconscientemente, para conseguir que retrocedamos no uso da razão”.

 

A frase é do professor espanhol Antonio Escohotado e poderia servir como uma luva para epígrafe ao documentário de Rodrigo MacNiven, no qual está inserida. Cortina de Fumaça é, assumidamente, o resultado de uma busca ao conhecimento e, ao mesmo tempo, a recusa ao conformismo, a verdade imposta e à manipulação.

 

Poucas áreas existem em que a demagogia, o populismo e a desinformação amealham tantos adeptos como a da repressão aos entorpecentes. Quase nada, em verdade, se discute neste campo tão coberto de preconceitos, que não raro mistura paradigmas morais e intenções eleitorais em discursos que se oferecem, em regra sem sucesso, como protetores de nossa saúde e de nossa segurança.

 

É preciso ir além do discurso que vem sendo repetido como um mantra, o da guerra às drogas, especialmente pelo caráter marcadamente nocivo que espraia em relação aos próprios bens que pretende tutelar -além de sua comprovada ineficácia. Nada mais ilustrativo deste caráter ao mesmo tempo propagandístico e inócuo do que a voz e a imagem de Richard Nixon, afirmando no início dos anos 70, do século passado, que o problema do vício nos Estados Unidos já está resolvido.

Muito dinheiro investido, muito desforço físico e intelectual das polícias e muitas fronteiras abertas sob o pretexto de coibir o tráfico depois, a venda e o consumo de entorpecentes permanecem euforicamente em alta.

 

O passado não consegue mesmo aprender com o futuro, como bem ilustra a frase do magistrado espanhol Javier Lázaro, que se estampa ao final do documentário: Algum dia, quando a descriminalização das drogas for uma realidade, os historiadores olharão para trás e sentirão o mesmo arrepio que hoje nos produz a inquisição.

 

MacNiven nos proporciona o aprendizado a que se ele mesmo se propôs, quando, com a sugestiva imagem de um avião decolando logo no início, explica em off os motivos que o levaram a fazer o filme: sabia muito pouco sobre um assunto que despertava tanta polêmica.

 

Quando o documentário se encerra, talvez seja o caso de chegarmos à mesma conclusão que o embalou: depois das respostas superficiais, baseadas mais em ideologias e mitos do que informações, descobri pessoas que estavam falando coisas bem diferentes do que eu estava acostumado a ouvir.

 

Não é um documentário isento ou imparcial, neutro ou apenas plural. Não se prende em um árido e fortuito confronto de opiniões. Ao revés, procura se valer de fontes habitualmente ignoradas ou excluídas das versões oficiais, já bastante disseminadas entre nós. Historiadores, cientistas políticos, sociólogos, médicos e juristas que apresentam visões que se contrapõem ao senso comum e nos permitem escancarar a dialética que no mais das vezes resulta escamoteada. E o faz de forma a unir a busca do conhecimento, por intermédio da superação do superficial, com o aguçar da sensibilidade que é típico do cinema.

 

São duas áreas, aliás, que ao operador do direito são tão importantes quanto desprezadas.

 

Na soberba do jurista, a falta de conhecimento costuma ser paradoxalmente associada à inapetência da descoberta.

 

Na redoma de vidro em que cotidianamente nos escondemos, por de trás de normas que supõem traduzir a realidade (ou às vezes simplesmente reescrevê-la por linhas excessivamente tortas), é raro quando nos dispomos a conhecer seus fundamentos. Não por outra razão, nosso aprendizado é lastreado na dogmática e a existência da norma positiva, aquela que já está posta e, portanto, não permite contradições, adquire pouquíssimos contornos de crítica.

 

A perversão da noção de pureza do direito acabou por isolar o aprendizado de outras áreas que se mostram imprescindíveis para seu conhecimento –e, neste particular, a interdisciplinariedade imposta pelo documentário já é em si mesma uma importante lição.

 

De outro lado, só o reconhecer que o direito existe para a vida, e não a vida para o direito, é que nos permite abrir-se para aplicá-lo aos casos concretos sem preconceitos ou abstrações puramente teóricas. Nós precisamos entender que não conseguimos traduzir em leis ou doutrinas todas as experiências da vida, e devemos estar abertos a fazer com que elas se insiram no direito. A sensibilidade que o cinema nos permite adquirir é uma importante chave para um comportamento tão necessário quanto incomum: quando a vida bater às portas de um processo, é preciso compreender a importância de fazê-la deixar entrar (cont.)

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