Uma reforma que fulmina os direitos trabalhistas, uma portaria que fragiliza o combate ao trabalho escravo. Uma política penal genocida que se expande sem cessar nos escaninhos de um estado social que só faz desaparecer.
A interdição do debate no espaço acadêmico, o moralismo revisitado, a reincorporação dos paradigmas religiosos na esfera pública. A censura dos espetáculos e os espetáculos com os quais se exerce a censura penal.
A sabedoria popular sempre intuiu que uma desgraça nunca vem sozinha, talvez porque tivesse a capacidade de supor, mesmo sem a integridade dos modelos teóricos, elos que uniam comportamentos aparentemente distantes. O rigor doutrinal pode ser resumido em outro jargão muito recorrente: isto não é um caso isolado.
Em meados dos anos 1970, Stuart Hall e seus companheiros do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham utilizaram um conceito então recentemente consolidado (pânico moral, por Stanley Cohen), para analisar as reações institucionais às seguidas crises que envolviam o capitalismo nas sociedades industriais –da recessão global à dêbacle do petróleo. Das entranhas dos novos mecanismos de coerção, que se vitaminavam para estancar a sangria da hegemonia, nascia um movimento supostamente pautado na lei e na ordem que formatava o embrião de um novo estado de exceção. Os crimes de rua se transformaram no pânico nacional –e a partir dele o início de um forte encarceramento com viés racial[1].
Margareth Thatcher ainda não havia assumido o poder no Reino Unido, mas se movimentava com ampla desenvoltura nas bases conservadoras. O retrato de época da pré-estréia britânica da nova ordem já contava com o retorno da pregação anticomunista e o desmantelamento gradual dos espaços tradicionalmente destinados à liberdade.
Wendy Brown, na outra ponta do relógio histórico, estabeleceu as premissas da desdemocratização a partir da amigável confluência, na administração Bush filho, do neoliberalismo e do neoconservadorismo. Assim as elencou: desvalorização da liberdade política, da igualdade, da cidadania substantiva e do estado de direito; a favor da governança de acordo com os critérios de mercado e da valorização do poder estatal para fins morais, em prejuízo da cultura e das instituições de democracia constitucional[2].
Na França atual, Pierre Dardot e Charles Laval utilizaram o conceito foucaultiano de governamentalidade para explicar que o neoliberalismo não se restringe a um modelo econômico ou uma ideologia política, o que permite compreender a dimensão de sua extensão. Trata-se de uma nova razão de Estado[3].
Uma racionalidade direcionada para a generalização da ideia de concorrência, para a figura do Estado como uma empresa e para a formatação de subjetividades similares nos próprios indivíduos. Uma racionalidade ademocrática, eis que as categorias da gestão tendem a ocupar o lugar dos princípios simbólicos que se encontravam no fundamento da cidadania. Os reflexos disso estão por toda a parte:
“É espantoso constatar a que ponto a contestação dos direitos sociais está intimamente ligada à contestação prática dos fundamentos culturais e morais, e não só políticos, das democracias liberais. O cinismo, a mentira, o menosprezo, a aversão à arte e a cultura, o desleixo da linguagem e dos modos, a ignorância, a arrogância do dinheiro e a brutalidade da dominação valem como títulos para governar em nome apenas da eficácia. Quando o desempenho é o único critério de uma política, que importância tem o respeito à consciência e à liberdade de pensamento e expressão?”[4]
O leitor brasileiro tem, agora, à sua disposição, uma obra que permite trabalhar com todos esses fios desencapados que tanto tem nos atordoado em diferentes perspectivas: o ressurgimento com vigor do preconceito, a violência crescente do sistema penal, a preparação de uma cultura endêmica do desemprego.
A tempestade perfeita que se forma contra a dignidade humana e a ideia em si do predomínio dos direitos fundamentais é muito bem descrita em “O Estado Pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis”, de Rubens Casara – que além de inúmeras outras qualificações, todas igualmente importantes, vem a ser um dos responsáveis por esta coluna ContraCorrentes.
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Os leitores do Justificando e os milhares que, a partir da viralização de seus links, tomaram contato com os artigos, portanto, vão reconhecer na obra algumas das preocupações que vem ditando seus ensaios mais recentes: a sociedade do espetáculo, a tradição autoritária do sistema criminal, o esvaziamento do papel garantidor do juiz.
Mas o livro agora lançado pela editora Civilização Brasileira nos permite ainda mais. Permite compreender a linha narrativa que estabelece os vínculos entre todos esses retrocessos e por que eles acontecem ao mesmo tempo. O texto nos alerta para o primeiro e mais relevante diagnóstico: não vivemos uma crise do Estado Democrático de Direito. Não se trata de uma situação episódica ou algo a que se possa simplesmente remendar: a pós-democracia é o novo modo de governar.
O que há de novo nela nem é propriamente a violação aos limites do poder, a qual efetivamente conhecemos de longa data nestas paragens, mas o desaparecimento de qualquer pretensão de fazer valer esses limites. Não mais do que uma casca, sem sentido, é o que nos sobra deles.
“Da mercantilização do mundo à sociedade do espetáculo, do despotismo do mercado ao narcisismo extremo, da reaproximação entre o poder político e o poder econômico ao crescimento do pensamento autoritário, sempre a apontar na direção do desaparecimento dos valores democráticos”. A democracia não desaparece, mas tem uma sorte ainda pior: perde seu conteúdo e persiste como farsa, apenas para justificar o arbítrio.
Há uma plêiade de temas interessantes que permeiam a leitura de Estado Pós-Democrático, que apesar da densidade intelectual vem redigido numa linguagem elegante e de fácil acesso: o empobrecimento do imaginário; a relativização da presunção de inocência; a relação entre violência, corrupção e a gestão dos indesejáveis.
Mas são particularmente dois temas que me despertaram uma atenção especial: a ideia de que o sistema de justiça é o principal campo de testes para a aceitação de medidas autoritárias e a compreensão das diferenças que a razão neoliberal projeta para as sociedades periféricas.
No primeiro ponto, a questão nevrálgica da ausência de limites: no Estado Pós-Democrático, os atores jurídicos estão dominados pelo poder, não mais pelo dever. O juiz não se porta como quem reconhece e estabelece os limites do poder, mas ao revés, encarna o poder justamente para transcender os seus limites.
Já tive oportunidade de estabelecer um diálogo com outra obra de Casara, Processo Penal do Espetáculo[5], quando discuti aqui mesmo nesta coluna, a figura do juiz neoliberal: “Aquele que não se esconde mais por detrás da lei, mas a esconde em sua presença. Não é omisso nem apolítico –suas opiniões são tão importantes quanto suas ações. Seu papel não é apenas o de legitimar a aplicação intensiva do direito penal, mas sim o de promovê-lo”[6].
A ausência de limites tem plena correspondência com os valores e a nova forma de tutela: No estado pós-democrático, explica Casara, “o poder penal encontra-se livre como nunca para atender aos interesses dos detentores do poder político e do poder econômico, o que se dá na exata medida em que os valores “liberdade”, “verdade”, e “justiça”, tratados como mercadorias, perdem total prestígio”.
O que deve nos alertar, todavia, é que o impacto da racionalidade neoliberal se mostra ainda mais profundo em sociedades de maior desigualdade. O recurso à criação das subjetividades como alternativa ao poder disciplinar, fazendo o cidadão se enxergar ele mesmo como um projeto empresarial, não se demonstra suficiente para países como o Brasil –em que o controle social se efetiva mesmo é com uma geométrica expansão do poder penal.
Mas se é verdade que muitos dos impulsos do populismo penal, do espetacularismo do processo, da profusão dos pânicos morais como parâmetros de exigências políticas, podem ser debitados aos reflexos da nova racionalidade, também é certo que muito do que se conheceu como penologia neoliberal (como o abandono da reabilitação nas prisões ou o crescimento dos poderes administrativos) já vinha sendo praticado entre nós há bastante tempo.
Uma lei que fragiliza exigências de invasão legal ao domicílio (como as no-knocks laws, norte-americanas) jamais foi uma necessidade por aqui, em face da cultura judiciária que legaliza o pé-na-porta e incorpora um contínuo estado de negação em relação aos abusos da polícia.
Muitos direitos hoje esvaziados nos países do Norte nunca deixaram de ser mais do que uma abstração entre nós.
Para o pensamento crítico que hoje se divide entre a aceitação dos modelos estrangeiros como universais e a construção de uma criminologia própria da dependência, a provocação de Casara não podia ser mais bem-vinda: será que não fomos utilizados como laboratório para a instauração deste modelo pós-democrático no que se refere à gestão da população diante da restrição de direitos?
Know how nunca nos faltou.
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