….Judiciário na democracia e da ditadura….

 
 Instituições autoritárias do Judiciário sobreviveram à ditadura

 

O artigo que segue foi escrito por Kenarik
Boujikian Felippe e Roberto Luiz Corcioli Filho, e publicado originalmente na
Folha de S. Paulo, seção “Tendências e Debates”. Celebra o acordo entre a
Comissão Nacional da Verdade e a Associação Juízes para a Democracia para
análise da atuação do Judiciário durante o tempo da ditadura, com a função de efetivar o
direito à memória e verdade histórica.

Mas os autores advertem: a falta de
democracia no Poder Judiciário permanece e o perfil autoritário da Lei Orgânica
da Magistratura de 1979 também: A lei “
possui regramento inaceitável em
instituições democráticas, como o sistema de eleição dos cargos diretivos dos
tribunais, bem como dispõe sobre a principal conquista da Constituição de 1988,
o direito de expressão e manifestação, com vedação de manifestação dos
magistrados, em completa dissonância com a normativa constitucional e
internacional”.

 

Judiciário na democracia e na ditadura     

Kenarik Boujikian Felippe* e Roberto Luis Corcioli Filho**

 

O período da ditadura militar teve expressiva atuação dos atores diretos
do golpe de março de 1964, mas também se sabe de episódios nos quais o
Judiciário andou de mãos dadas com o Executivo, dando suporte e legitimando
violações, seja de forma ativa, seja na forma omissiva.

A Comissão Nacional da Verdade firmou acordo de cooperação técnica com a
Associação Juízes para a Democracia com o objetivo de recolher dados,
documentos e informes sobre a atuação do Judiciário, para efetivar o direito à
memória e à verdade histórica.

A magistratura não saiu ilesa das arbitrariedades cometidas pelo regime.
Vejam a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal
Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.

Houve também momentos memoráveis de reafirmação dos direitos humanos
pelo Judiciário, como a sentença do juiz federal Márcio José de Moraes, no caso
do assassinato do jornalista Vladimir Herzog (1978).

Várias decisões do STF não referendaram o arbítrio, como: o habeas
corpus a favor de Miguel Arraes, preso sem processo; pela liberdade de cátedra
de Sergio Cidade Resende, em momento que professores estavam sendo cassados; o
uso de medida liminar para evitar constrangimento ilegal em relação ao
governador de Goiás etc.

Mas tivemos, por exemplo, torturas sabidas pelo Judiciário de ontem.
Elas continuam presentes, o que mudou daquele tempo da ditadura para hoje são
os eleitos como inimigos do Estado.

É preciso identificar, dentro do chamado sistema do devido processo
legal, do direito de defesa, o que foi feito e o que não foi feito.

Fundamental revelar os marcos normativos institucionais do Judiciário
que ainda perduram, sem que o país tenha cumprido os ditames da justiça de
transição, que implica instituições reorganizadas e “accountable”
(dever de prestar contas), reformas institucionais que vão de expurgos no
aparato estatal a transformações profundas em instituições como Forças Armadas
e Judiciário.

Naquele período não havia qualquer linha que lembrasse uma gestão
democrática do Poder Judiciário, o que ainda se faz presente.

A Lei Orgânica da Magistratura, de 1979, legado da ditadura, ainda não
foi revogada e possui regramento inaceitável em instituições democráticas, como
o sistema de eleição dos cargos diretivos dos tribunais, bem como dispõe sobre
a principal conquista da Constituição de 1988, o direito de expressão e
manifestação, com vedação de manifestação dos magistrados, em completa
dissonância com a normativa constitucional e internacional.

Apenas a título de exemplo, a norma serviu de base, em pleno 2012, para
três desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo representarem contra
magistrados que assinaram um manifesto crítico à forma pela qual se deu a
desocupação do Pinheirinho (São José dos Campos).

Exerciam direito assegurado pela Constituição (“é livre a
manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”), consagrado na
Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem, no Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, na Convenção Americana de Direitos Humanos e preconizado no 7º
Congresso da Organização da ONU, no sentido de que “magistrados gozam,
como outros cidadãos, das liberdades de expressão, crença, associação e
reunião”.

A representação foi arquivada pela Corregedoria, mas tudo a apontar o
sintomático déficit democrático ainda vivido por esse Poder.

Conhecendo melhor o papel do Judiciário, tornando os fatos do passado
públicos e transparentes, certamente o país dará um passo adiante para que o
Judiciário se torne plenamente o garantidor dos direitos humanos, para
superarmos velhas práticas autoritárias que ainda imperam em instituições
públicas, pois só assim poderemos atingir os objetivos prometidos pela
Constituição, de construção de uma sociedade livre, justa, solidária.

*Kenarik Boujikian Felippe é desembargadora do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo. É cofundadora e ex-presidente da Associação
Juízes para a Democracia

**Roberto Luiz Corcioli Filho é juiz de direito em São Paulo e
membro da Associação Juízes para a Democracia

 
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