Contrabando de quinze mil crianças é a página mais triste das retaliações americanas à Revolução Cubana
Os últimos soldados da guerra fria, Fernando Morais
Espiões cubanos enviados secretamente a Miami para serem infiltrados em organizações anticastristas de modo a evitar atentados contra pontos turísticos na ilha. Espionagem, contraespionagem, terrorismo e política, narrados de uma forma eletrizante. Apesar de emocionante, o thriller de Fernando Morais (“Os últimos soldados da guerra fria’) não tem nada de ficção.
É história recente, mas praticamente desconhecida entre nós. As escaramuças e retaliações americanas à Revolução Cubana, e a contundente ação dos dissidentes sediados em Miami pode ajudar a jogar luz sobre a violação de direitos humanos na ilha –e no continente americano.
De todos os episódios que Morais narra, inclusive para contextualizar as ações de ambos os lados, o mais impactante é a Operação Peter Pan. Por ela, quase quinze mil crianças cubanas foram contrabandeadas para os EUA, sob falsas ameaças. De novo, parece enredo de ficção. Mas Fernando Morais a relata com uma preciosidade de detalhes e ajuda a compreender como a propagação do terror com o mote ‘comunista come criancinha’ foi muito mais real e muito mais drástico do que uma piada de mau gosto.
Conheça o episódio pela narrativa do autor.
No auge das primeiras confrontações entre Havana e Washington, a CIA e o arcebispo Coleman Caroll, titular da arquidiocese de Miami, arquitetaram um espantoso plano de transferência massiva de crianças de Cuba para os Estados Unidos, para o qual contaram com o apoio indispensável da Igreja cubana. Batizada de Operação Peter Pan e inspiradora de livros e filmes, a ação teve início numa noite de outubro de 1960, com a patética proclamação de um locutor da rádio Swan, stacão de ondas médias da CIA instalada na ilha Cisne, em território hondurenho, para transmitir programas dirigidos a Cuba. “Mães cubanas! O governo revolucionário está planejando roubar seus filhos!”, gritava o radialista. “Quando fizerem cinco anos, seus filhos serão transformados em monstros materialistas! Alerta, mães cubanas! Não deixem que o governo roube seus filhos!” O segundo passo foi dado na manhã seguinte, quando centenas de milhares de panfletos foram espalhados pelo país com o texto de uma falsa lei, redigida nos escritórios da CIA, que estaria para ser posta em vigor, “a qualquer momento” pelo governo de Cuba. Repleto de considerandos e de citações da legislação em vigor, o documento apócrifo era assinado por “Doutor Fidel Castro Ruz, primeiro-ministro” e pelo então presidente da República, Osvaldo Dorticós.
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O homem escolhido pela arquidiocese para executar o plano era o padre Bryan Walsh, um irlandês cinquentão de 1,90 metros de estatura e físico de pugilista que vivia nos Estados Unidos desde a juventude. Ao chegar a Havana, semanas depois, levando na bagagem nada menos do que quinhentos vistos de entrada nos Estados Unidos em branco, Walsh encontrou uma sociedade chocada. Os desmentidos do governo revolucionário não tinham sido suficientes para diminuir a apreensão das famílias cubanas. Além disso, vigários de paróquias de todo o país, especialmente no interior, onde vivia a população mais simples e desinformada, se encarregaram de difundir a macabra versão de que as crianças separadas dos pais seriam removidas para Moscou e transformadas em alimento enlatado para o consumo da população russa. Não era a primeira vez que se utilizava para fins políticos história tão medonha e inverossímil. A anedota segundo a qual comunistas comiam pessoas nascera no fim da Segunda Guerra, quando a máquina de propaganda fascista inundara a Itália de folhetos que afirmavam que os soldados italianos que se entregassem ao Exército Vermelho seriam mortos, triturados e transformados em comida para saciar a fome que dizimava milhões na Rússia stalinista.
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….quando a Operação Peter Pan foi concebida, Cuba e Estados Unidos ainda mantinham relações normais. Centenas de viajantes cruzavam diariamente o estreito da Flórida, nos dois sentidos, nos voos que ligavam a capital cubana à Flórida. E a ponte aérea entre Havana e Miami foi o caminho escolhido pelo ladre Walsh para por em prática a operação. Por exigência da CIA, ninguém viajaria acompanhado dos pais. Os quinhentos formulários em branco que o religioso levara na primeira viagem não seriam suficientes, como se saberia mais tarde, para atender sequer a 5% dos pequenos candidatos à salvação do inferno comunista.
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Segundo a ONG americana Pedro Pan Group, ao todo foram contrabandeados 14048 menores, de ambos os sexos, alguns dos quais acabariam por se converter em personagens da vida pública norte-americana, como o senado republicano Mel Martinez, o ex-prefeito de Miami, Tomás Regalado, e os diplomatas Eduardo Aguirre, nomeado embaixador na Espanha pelo presidente George W. Bush, e Hugo Llorens, que era embaixador em Honduras em 2009, quando da deposição do presidente Manuel Zelaya. Instalados inicialmente em orfanatos católicos e instituições de caridade, milhares deles jamais voltariam a ver os pais e mães. No começo de 1962 chagava ao fim a Operação Peter Pan, um dos mais dramáticos e dolorosos episódios da história da Revolução Cubana.
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