….a liberdade de expressão dos juízes….

 

 

 

Liberdade de expressão é  atributo indissociável da dignidade humana; privar juízes é relegá-los à  condição sub-humana

 

Em março deste ano, cinco  juízes –inclusive este blogueiro- foram representados na Corregedoria Geral da
Justiça por três desembargadores (Otávio Henrique de Sousa Lima, José Orestes de Souza Nery  e  Francisco José Galvão Bruno) em face da assinatura em manifesto que  propunha a denúncia do governo do Estado de São Paulo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no caso Pinheirinho.
Arquivada a representação  disciplinar por decisão do Corregedor Geral da Justiça, a questão foi
submetida, por via de recurso ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O recurso foi improvido por larga  maioria (20×4), em sessão aberta do Órgão Especial, no dia 24/10/12 –sendo,  agora, disponibilizado o acórdão.

O voto que segue é a  declaração do desembargador Antonio Carlos Malheiros (voto vencedor), um
verdadeiro libelo na defesa da liberdade (“não é a liberdade que faz mal aos homens. É a sua falta
que deforma as sociedades humanas
) e especificamente da inalienável  liberdade de
expressão dos juízes: “A  liberdade de expressão é atributo indissociável do estatuto da dignidade  humana. Privar juízes de exercer esse direito é mutilá-los em sua própria
humanidade e relegá-los a uma condição sub-humana
.”

 

A íntegra do acórdão do TJSP
pode ser baixada aqui.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Voto nº 27.179

 

Processo nº 34923/2012- São
Paulo

 

Recorrentes:
Desembargadores José Orestes de Souza Nery, Otávio Henrique de Sousa Lima e
Francisco José Galvão Bruno.

 

Interessados:
Kenarik Boujikian Felippe, José Henrique Rodrigues Torres, Marcelo Semer, Dora
Aparecida Martins de Morais e Roberto Luiz Corcioli Filho.

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

 

Recorrem os denunciantes ao  Órgão Especial inconformados com a decisão do Exmo. Sr. Corregedor,  que arquivou a representação por eles  formulada, para que não se dê seguimento à representação contra os cinco  magistrados que subscreveram:  “Manifesto pela denúncia do caso Pinheirinho  à Comissão Interamericana de Direitos Humanos”.

 

Insistem que há afronta aos  artigos 35, inciso I, e ao artigo 36, inciso III, da LOMAN e noticiam a  existência de relatório de Comissão da OAB/São José dos Campos, sobre a  desocupação daquela área.

 

É o  relatório.

 

Há que se conhecer do  recurso, para improvê-lo, como proposto pelo Exmo. Sr. Corregedor Geral de  Justiça, cujo excelente voto ratifica-se “in totun”.

 

Por primeiro, necessário  fixar que o caso em tela restringe-se a verificar se houve  falta disciplinar dos magistrados, à luz dos  artigos referidos da LOMAN e da Constituição Federal,  não sendo hipótese de expandir , porque não  compatível em sede deste julgamento, em considerações acerca do episódio  Pinheirinho, razão pela qual despicienda  a juntada do relatório mencionado.

 

O fato é que os magistrados  representados assinaram o referido manifesto, que foi juntado aos autos e que,  segundo os representantes, quando tiverem conhecimento, chegava a 130
subscrições, como registraram na petição, a fls. 05.  Entretanto, o documento juntado pelos
próprios representantes indica que, em 29 de janeiro de 2012, o manifesto  contava com 5424 assinaturas, em que pese não terem juntado as mesmas em sua  integralidade, como se vê a fls. 12, sendo que a representação foi protocolada  em março.

 

Como salientado pelo nobre  advogado, em sua bem lançada sustentação oral, vários magistrados da esfera  estadual paulista e de outros estados e da jurisdição federal e trabalhista
subscreveram o manifesto. No entanto, apenas os cinco magistrados foram  representados, não havendo notícia em relação aos demais magistrados.

 

Mas, repita-se, o que  verdadeiramente importa neste expediente.  Não é o tema sobre o qual os magistrados se manifestaram, mas o ângulo  de análise apresentado pelo Exmo. Corregedor, qual seja, o valor da liberdade  de expressão, em pleno 2012.

 

A Lei Orgânica da  Magistratura – LOMAN foi editada quase no apagar das luzes do período da  ditadura militar. Em março de 1979, a lei vetou manifestação de juízes, suas  opiniões críticas ou elogios, sobre processos em curso, vedando aos  magistrados, nos termos do artigo 36, inciso III: “manifestar, por qualquer  meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de  outrem, ou juízo depreciativo sobre e despachos, votos ou sentenças, de órgãos  judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício  do magistério”.

 

O projeto da Loman foi  duramente criticado por associações de juízes de todo o Brasil e por todos os  que tinham a perspectiva de democratização do país. Deputados ressaltaram que
“a independência e a garantia do magistrado são condições preliminares para a  normalização da vida brasileira”.

 

Mas a democratização por fim  chegou e a Constituição Cidadã, seu marco, acolheu valores de uma sociedade  verdadeiramente interessada em avanços. É à luz de seus ditames, que devem ser  interpretadas as normas.

 

A Constituição de 88 é o reflexo  dos novos tempos, que também plasmou o Judiciário.

 

De lá para cá, temos uma  verdadeira reviravolta do Judiciário, que muito tem para caminhar no processo  de democratização, mas temos que reconhecer que antes o Judiciário mantinha
exacerbado distanciamento com a sociedade, mas do mesmo modo, temos que  reconhecer que, pós 88 inicia-se uma nova fase e uma nova forma de interação,  que ainda esta em fase de construção. Impossível não apontar que o Poder  Judiciário, por várias políticas, tenta se aproximar dos jurisdicionados,  abrindo-se cada vez mais em termos sociais.

 

A face que permite esta  aproximação é o diálogo e a transparência.

 

Hoje, magistrados de todas  as esferas, inclusive dos Tribunais Superiores, do Supremo Tribunal Federal,  dos Tribunais de Justiça, dos TRE’s, manifestam-se sobre diversos temas e
também sobre processos judiciais em andamento. Às vezes, até mesmo sobre  aqueles que devem julgar, evidentemente com cautela e razoabilidade.

 

Parece-me claro que não  podemos tomar esses magistrados como incautos, temerários e rebeldes  descumpridores da Lei Orgânica da Magistratura. Teria o Judiciário do Brasil se
tornado caótico a tal ponto, já que um dos argumentos da representação ora  apreciada é um brado contra o caos no Judiciário?

 

Por certo os tempos são  outros. E, o fato é que esta conduta não esta em discórdia com a Constituição  Federal, verdadeira guia dado pelo povo aos Poderes do Estado. Pelo contrário,
a liberdade de expressão e pensamento é máxima da Constituição Federal e um dos  direitos fundamentais de primeira grandeza, que não foram subtraídos dos  magistrados.

 

Neste ponto, farta a  jurisprudência elencada pelo nobre Corregedor Geral de Justiça, sendo  desnecessário acréscimos.

 

Ainda, cabe registrar que o  Brasil assumiu compromissos internacionais com a subscrição de várias  Declarações e Tratados Internacionais. Na órbita da ONU, foi dedicada especial
atenção à independência judicial, como se vê de alguns documentos, como o  produzido no Sétimo Congresso das Nações Unidades, no qual ficou assente que os  juízes gozam de liberdade de expressão.

 

O CNJ já se debruçou sobre o  tema e em um de seus procedimentos, no PCA 200810000023273, da relatoria do  Conselheiro Rui Stoco, a referência estabelecida é que o magistrado não pode  ser prejudicado ou punido pelas suas opiniões. Apenas faz a ressalta, por  excesso de linguagem ou impropriedade.

 

O Conselho Nacional de  Justiça, como lembrado pelo ilustre advogado dos representados na sustentação  oral, concedeu medida cautelar, em maio de 2009, para cessar o andamento do  expediente administrativo autuado na Corregedoria-Regional da Justiça Federal  da 3ª Região, para instauração de procedimento administrativo disciplinar, que  requisitou  informações para diversos
magistrados que subscreveram manifesto,  sobre eventual violação ao artigo 36, III, da Lei Orgânica da
Magistratura Nacional, indicando o  que o  ato era agravado com aparente atipicidade da conduta imputada aos magistrados,  na medida em que os fatos narrados não se enquadram na vedação contida no
inciso III, do artigo 36, da Lei Complementar 35/79.

 

No tocante à falta atinente  ao artigo 35, inciso I, da LOMAN, que impõem ao magistrado o dever de “cumprir  e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições
legais e os atos de ofício”, verifico que não há a indicação de qualquer fato  específico indicado pelos representados, no sentido de concluir que eles  cometeram tal fato, na assinatura do manifesto.

 

De fato, a solução de  arquivamento é a mais justa.

 

Ao fazê-lo, penso,  fundamentalmente, em uma frase de Stuart Mill, que endossa uma intuição moral  que sempre caminhou com este Desembargador. Dizia, pois, o filósofo, insuspeito
de ser um subversivo, esquerdista ou rebelde, em seu tempo e certamente hoje, e  reputado na história da Filosofia como o mais qualificado defensor das ideias  liberais:

 

“Se em toda humanidade menos um fosse da  mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse da opinião contrária, a humanidade  não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse,  de silenciar a humanidade”

 

 

Em outros termos: não é a  liberdade que faz mal aos homens. É a sua falta que deforma as sociedades  humanas. Já sofremos demais por não aprender as lições da História.

 

“Prefiro os que me criticam, porque me  corrigem, aos que me elogiam, porque me corrompem”

 

Não se faz, com o auxílio de  Santo Agostinho, qualquer juízo de valor sobre o que levou juízes a assinarem  um manifesto, a escreverem artigos e dar entrevistas.  Não se trata disso. O que se quer é apenas  ressaltar a função social da liberdade.

 

A ausência de liberdade gera  a ausência de críticas e somente pode ser doentia, posto que fechada.

 

É daí que derivam a  discórdia, o descrédito e a desqualificação da ordem social. Não da liberdade.  Mas da falta de liberdade. Nesse ponto, penso que os nobres magistrados  denunciantes partem do diagnóstico errado ao pretender zelar pela credibilidade  do Judiciário. Quanto mais estiver o Judiciário exposto à crítica e à percepção  de suas deficiências (se o caso), melhores serviços prestará à sociedade.  Inclusive – por que não? – pelos seus próprios integrantes, em tese, grandes e  em muitos aspectos melhores qualificados, para verem problemas no órgão em que  atuam.

 

Por isso, não há preocupação  a se ver, quase que cotidianamente, magistrados exercerem seu direito de  opinião e comentar decisões judiciais em curso, a começar pelos Senhores
Ministros do STF. Eu me preocuparia se não ocorresse.

 

Em termos sociais, a  racionalidade disso é infinitamente superior ao que poderia resultar, hipoteticamente,  de benefício, pelo cumprimento rígido e pétreo da lei do silêncio, que jamais
interessa à sociedade.

 

Admitamos, para argumentar,  que críticas de juízes a decisões judiciais não findas podem gerar  mal-estar.  Mas não há vida imune ao  mal-estar (salvo no paraíso, por ora, pelo menos, fora do nosso alcance). É  inerente às relações sociais. Se a cada mal-estar ou incômodo passarmos a
sacrificar princípios, pagaremos o preço da democracia, que não é a paz dos  cemitérios, mas, pelo contrário, o permitir do aflorar das contradições. É  então que crescemos como seres humanos e enriquecemos a sociedade.

 

Nesses argumentos está a  base dos dispositivos dos instrumentos internacionais (dos quais o Brasil é  signatário) que asseguram a liberdade de expressão e dos princípios  constitucionais.

 

A liberdade de expressão é  atributo indissociável do estatuto da dignidade humana. Privar juízes de  exercer esse direito é mutilá-los em sua própria humanidade e relegá-los a uma
condição sub-humana. Este Tribunal, que tem primado historicamente pelo  respeito aos valores constitucionais, não pode compactuar com tal violação.

 

Assim, sustento que o  conflito que hoje julgamos somente pode ser solucionado com o amparo dos  princípios constitucionais. Com o espírito da Constituição, que vivifica, e não  com a letra da LOMAN, que, neste ponto, é a letra que mata.

 

São os princípios que dão  credibilidade, prestígio e encaminham bem as coisas no Judiciário. Neles estão  os altos valores que permitem convergir. Como dizia o teólogo jesuíta Teilhard
de Chardin, “tudo que se eleva converge”. Fiquemos com os princípios e fiquemos
com o que eleva.

 

Com estes fundamentos, voto  pelo arquivamento da representação.

 

 

 

ANTONIO CARLOS MALHEIROS

Um comentário sobre ….a liberdade de expressão dos juízes….

  1. C Sidney 24 de novembro de 2012 - 22:47 #

    Étienne De La Boétie, (“Discurso sobre a servidão voluntária”), afirma que o homem se submete ao tirano ou a tirania por vontade própria, porque se sente mais seguro sob o jugo e, se quisesse a sua liberdade de volta, bastaria rebelar. Coisa que faz raramente. “O navio está seguro no porto; mas navios são feitos para navegar” – a frase, mais ou menos essa, cujo autor me escapa, exemplifica o desejo humano de segurança em contradição ao de aventurar-se, reconstruir-se. Sim, reconstruir-se, porque é fato que na sociedade o homem está em permanente reconstrução, por isso deve ser livre. Liberdade é o direito de transformar-se. Reconstruir-se, quebrar paradigmas, regras, afrontar-se. Mas, e há sempre um “mas” no caminho, “os homens desejam ser mais livres do que escravos, mas também preferem mandar a obedecer. O homem ama a igualdade, mas ama igualmente a hierarquia quando está situado em seus graus mais elevados.” (Norberto Bobbio – “Igualdade e Liberdade”). Vai daí que, há muito suspeito que o colunista têm os seus tropeços junto a hierarquia judiciária, confortavelmente instalada no trono, defendendo a lei como poder sem limites, respaldo totalitário de uma sociedade “encantada” por uma aparente “democracia”. Enfim, a hierarquia entrincheirada para lutar que “tudo mude, desde que continue sempre a mesma coisa”. Mas não se aflija, é assim mesmo, natural, e sempre será, pois que sem resistência do “Estado”, tudo descambaria para a “anarquia”. Para parabenizá-lo, professor, e a teus colegas que assinaram o manifesto, retorno a La Boétie, e fazer nossa as palavras do libertário: “Não nascemos apenas na posse de nossa liberdade, mas com a incumbência de defendê-la.” Caso contrário, vamos nos conformar com Ambrose – “Amargo” – Bierce, para quem “a liberdade é um dos mais preciosos bens da imaginação”. Um abraço.