Temas enfrentados no Blog Sem Juízo traduzem um contraditório 2011
Em 2011, o Blog Sem Juízo comemorou seu primeiro aniversário e chegou a cem mil visitas. Criou as seções: “Prateleira”, “Fazendo Justiça” e “Cultura Sem Juízo”, abertas à contribuição dos leitores, e passou a publicar as “Crônicas do Crime”, que pretendo em breve transformar em livro.
Por intermédio de meus artigos e de artigos de outros autores que aqui postei, foi possível passear entre temas pelos quais se pode tentar compreender este contraditório 2011. Desalento generalizado com as conseqüências da crise e seus reflexos mundo afora compartilharam espaço com o surgimento de novas interações e mobilizações; do movimento dos indignados e a crítica à representação política ao liminar da reinvenção da democracia; da ascensão social no país, à dura convivência com o recrudescimento do preconceito; da emancipação à redescoberta da moderna escravatura. Os dilemas do Judiciário anacrônico, corporativista e elitista, com credibilidade inversamente proporcional à sua necessidade na democracia. Um pouco de tudo desses confusos dias, em um retrato multifacetado de um 2011 que estamos deixamos para trás.
1-) Menos orgulho mais preconceito
O ano começou com a posse de nossa primeira presidenta da República, Dilma Roussef. Já na cerimônia de posse, enquanto ela de forma inédita passava em revista aos militares e instava a coragem como seu principal atributo, milhares de comentários levavam a jovem esposa do vice-presidente aos trending topics das redes sociais. Afinal, mulher jovem e bonita, ao lado de um político idoso só poderia ter um significado. “Superar estereótipos é o primeiro passo para romper preconceitos”, escrevi na ocasião.
Mas a maledicência com Marcela Temer ia ser muito pouco perto da explosão da homofobia, xenofobia e racismo dos últimos anos. A ascensão social e gradativa incorporação de direitos civis (cotas raciais, reconhecimento de direitos das relações homoafetivas, vitória de um nordestino na política) detonaram ondas de preconceitos pelo país afora. Críticas a nordestinos e negros nas redes sociais, agressões a homossexuais nas ruas, piadas racistas e um enorme espaço de televisão a um deputado reconhecidamente homofóbico.
O assunto tomou as colunas do Blog Sem Juízo, com “Preconceito descortina país pouco cordial” e “Cruzada religiosa combate direitos civis dos gays”.
Diante desse inusitado panorama, defendemos a criminalização da homofobia (“Homofobia também é racismo”) e apoiamos a decisão do STF que reconheceu a união estável homoafetiva, abrindo caminho para a sentença do “Primeiro casamento gay”.
2-) Dos indignos aos indignados
Depois da libertária Primavera Árabe e dos movimentos espontâneos que correram o mundo, de Cairo a Santiago, de Londres a NYC, afrontando de um lado o expressivo poder econômico e de outro a representação política a ele submetido, concluímos que “Os indignados vão virar o planeta de cabeça para baixo”.
Ainda não se sabe quais serão os reflexos da volta às ruas e da tomadas de praças por todos os cantos, com multidões alheias às disputas eleitorais. O movimento, que culminou com o “Ocupa Wall Street” é mais um ponto de partida do que porto de chegada e tem tudo para nos fazer refletir sobre o papel dos governos: secundar o 1% no topo da pirâmide ou dedicar seus esforços aos 99% restantes? Revoluções ou pilares de uma nova democracia, quem ignorar o que o mundo vive, pode chegar tarde demais para compreender.
3-) O mundo na rede
Facebook e twitter deixaram de ser meros aplicativos destinados a exercitar o narcisismo e aprofundar as distâncias entre os jovens. Se existe uma grande novidade de 2011, foi o protagonismo das redes sociais em movimentos populares, como aqueles que levaram às revoltas no mundo árabe e as mobilizações dos indignados por vários continentes. A possibilidade de manifestações sem líderes, facilitada pelo alto nível de conectividade, e o caráter viral que viabiliza rápidas disseminações de informação e protestos, mostraram a importância do direito à comunicação (“Direito à comunicação e declaração cibernética”).
Ao mesmo tempo em que as redes sociais exibiram sua força (“Redes sociais e as novas formas de democracia”), mecanismos de controle começam a ser levantados. “Internet balança ditaduras, mas sofre ameaças” discutiu a necessidade de estabelecer um direito à comunicação e a questão sobre “Liberdade x tutela na web” foi tema de exposição entre os blogueiros progressistas.
4-) Os juízes e a democracia
2011 foi um ano fértil para o Judiciário. Fértil, porém sofrido. De altos e baixos, a Justiça pôde, sobretudo, iniciar uma discussão acerca de seu papel na construção, ou, em certos casos, na interdição à democracia. A condução do poder, o anacronismo de suas oligarquias (“Quem tem medo da democracia nos tribunais?”), o elitismo de suas decisões (marcado em “Pobres lotam cadeias, ricos entopem tribunais”), e o corporativismo de sua proteção ficaram expostos como nunca.
É ruim para a credibilidade da Justiça (como avaliei em “Cabo de guerra destroça credibilidade na Justiça”, sobre a contenda entre CNJ e STF, também abordada em “Judiciário é desigual na punição a juízes”), mas talvez necessário para compreendermos nosso papel.
2010 havia terminado com a melancólica indecisão sobre o Ficha Limpa (ele mesmo um projeto que eleva perigosamente o poder dos juízes, como advertido em “O que os juízes devem e o que não devem decidir”) e iniciou com o desgaste do caso Battisti, sobretudo pela ânsia de metade de seus integrantes de se sobrepor, pela contrariedade, à decisão de governo pelo asilo e extradição. “Luta de poder envolve caso Battisti” analisou a questão.
Mas poucos casos foram tão evidentes quanto às contradições do papel do juiz nas proibições à Marcha da Maconha e sua posterior liberação por decisão do STF, prestigiando, de forma unânime, o constitucional direito à manifestação. Que juiz queremos na democracia, o garantidor de direitos ou o agente censor, tema enfrentado em “STF deve assegurar direito à manifestação”.
Discutimos, ainda, a liberdade de expressão dos juízes, em face de exceção de suspeição, com fundo ideológico, suscitada por manifestações do juiz carioca Rubens Casara contra ilegalidades na ocupação de morros pela polícia no Rio de Janeiro (“A liberdade de expressão dos juízes”)
2011 marcou o aniversário de 20 anos da Associação Juízes para a Democracia, registrados em um artigo meu (“Juízes para a democracia: 20 anos dedicados ao garantismo”) e um de Marcio Sotelo Felippe (“Há juízes em Berlim”), além da transcrição do discurso do presidente José Henrique Torres (“AJD, 20 anos para a democracia”). Foi também o ano em que a associação sofreu seu mais forte ataque da grande mídia, em duas frentes da revista Veja, com base em uma nota que criticava o ingresso da polícia no campus da USP. “Veja quer calar a democracia” retratou minha resposta aos ataques.
5-) O novo reacionário e o politicamente incorreto
2011 também foi marcado pelo espaço concedido ao novo reacionário, nas televisões, jornais e programas de humor. O rebelde sem causa mira supostamente na libertação do “politicamente correto” como subterfúgio para dilacerar o conceito da dignidade humana e sua tutela. Tudo vale, em nome dessa nova liberdade às avessas. A expressão foi usada como arma, a igualdade criticada como amarra, a banalização da violência verbal por intermédio dos colunistas do insulto é a moderna forma de plantar a semente do ódio. “O moderno reacionário é a porta de entrada do velho fascismo” tratou de identificá-los; “Expor preconceito não é coragem, mas covardia” repeliu o discurso bolsonaro que inverte os parâmetros da honradez. E, após a tragédia nórdica, explicitamos: ”Noruega ensina que racismo não pode ser visto como folclore”.
6-) Defendendo os defensores
“Quem tem medo da defensoria pública?”, indagou por que governos e políticos receavam tanto criar ou estruturar o órgão consagrado pela CF para a assistência jurídica à população carente. Pobre não merece defesa ou é melhor não ser educado em direitos? A luta pela criação da Defensoria Pública em SC foi registrado em “Cresce pressão para criação da última defensoria” até o momento sem sucesso. E, por fim, reproduzindo artigo da FSP, “Descaso com defensoria: o barato que sai caro”.
A luta pela defensoria é, sobretudo, uma luta pela apropriação popular do Estado, que vai se revelar em tantas outras dimensões que apontam o alheamento do povo como destinatário das políticas, como em “Euforia da Copa ignora moradia popular” e “Desastre revela urgência da reforma urbana”.
No fundo, por mais avanços que podemos constatar, ainda cabe a pergunta: porque o Estado não serve a quem dele mais necessita?
7-) Tortura e violência
2010 acabou com a marca da decisão do STF de sepultar o julgamento dos crimes da ditadura (“Um perdão cordial”), mas 2011 trouxe novo alento com a decisão da Corte Interamericana dos Direitos Humanos quanto à imprescindibilidade dos julgamentos. A decisão já era esperada, como escrevemos (“Corte Interamericana pode romper silêncio sobre crimes da ditadura”), e foi registrada com júbilo (“Decisão da OEA abriu caminho para julgar tortura”), inclusive com o belo voto em separado de Roberto Caldas (“O juiz brasileiro na Corte Interamericana”).
No entanto, nem o governo nem a Justiça deram bola à decisão, mantendo o caminho da omissão, que nos legou sérias conseqüências. A complacência com a tortura é um dos principais ingredientes para a permanência até os dias de hoje da violência policial (“Complacência com tortura estimula violência policial”), sendo o caso mais contundente no ano, o assassinato da juíza Patrícia Acioli atribuído a policiais militares flagrados na simulação de autos de resistência. O assunto foi abordado no meu artigo “Honrar Patrícia é não ser conivente com a violência policial” e no do juiz carioca João Batista Damasceno: “O assassinato da juíza”, campeão das leituras no ano.
😎 A força da grana
O esvaziamento do Estado e a falta de controle provocaram a mais intensa crise dos últimos tempos, na qual ainda estamos imersos e sem resultado à vista. Por mais incrível que possa parecer, quem criou a crise se arroga na condição de fornecer subsídios para enfrentá-la. Não é a toa que os prejuízos das grandes instituições financeiras acabam por ser suportados por demissões e cortes de aposentados. A capacidade do Estado de tutelar e impor sanções aos donos do poder é cada vez menor. Pela recuperação do poder do estado de tutelar o poder financeiro e exercer o seu poder de polícia, ficaram marcados os textos “Fifa quer submeter país e esporte a negócios” e “Consumidor, um ser desprezível”. O alheamento da sociedade em face das violências produzidas nas relações de consumo vem registrado em “Trabalho escravo é uma verdade inconveniente”.
9-) Drogas e guerras
Em 2011, volta à baila o tema da descriminalização dos entorpecentes, inclusive com o filme Quebrando o Tabu, estrelado entre outros pelo ex-presidente FHC. A questão já havia sido examinada no Sem Juízo, com o artigo “Fracasso da repressão reabre debate sobre descriminalização”.
Os inconvenientes da Guerra contra as Drogas ficaram ainda mais perceptíveis. Mesmo com o aguçamento da repressão, o volume de consumo tem aumentado, o tráfico ilícito também. O contato com o tráfico põe em risco à higidez da polícia e a escalada da violência, já encarada como luta urbana, não parece ter mais limites. Não bastasse isso, a política repressiva acabou fragilizando a relação polícia-cidadão, tão cara à democracia, como se viu na violência que impediu a Marcha da Maconha (“Repressão à Marcha da Maconha é nostalgia da ditadura”) e o conflito na USP (“Conflito na USP é maior do que maconha”). Raras são as políticas criminais que podem se dar ao luxo de conseguir tamanhos inconvenientes, tema da palestra no X Congresso Nacional dos Defensores Públicos (“Política Criminal, drogas e democracia”).
10-) Corrupção e Transparência
Muito se falou sobre corrupção em 2011. A grande imprensa se jactou da capacidade de derrubar ministros com divulgação de escândalos, embora tenha, ao final do ano, ocultado um livro-reportagem denúncia de ilícitos nas privatizações. Os erros da indignação seletiva e a necessidade de transformar criticas em institutos que permitam maior controle, foram abordados em “Financiamento privado e foro privilegiado preservam corrupção” e ainda “Lei de acesso é vacina contra corrupção” –neste último caso, a aprovação da lei de acesso foi saudada pela coincidência da promulgação na mesma data da Comissão da Verdade. Com todas as imperfeições da tíbia Comissão da Verdade, é preciso entender que as duas coisas se entrelaçam: conhecer a verdade sobre o passado é a melhor forma de não repetir os erros no futuro.
Parabéns doutor, bela síntese. Que em 2012 o excelente trabalho da AJD continue dando seus frutos, que nossa justiça possa se aproximar cada vez mais da sociedade.