Do que são feitos os mais ríspidos embates no Supremo Tribunal Federal
Em Tropa de Elite, o diretor José Padilha nos provoca com o dilema sobre a polícia: a opção entre ser corrupta ou assassina. Nos embates jurídico-penais-midiáticos que temos presenciado nos últimos meses, reacende-se um falso dilema do mesmo quilate: a escolha entre a corrupção e o arbítrio em combatê-la.
Toda e qualquer forma de coerção do Estado sobre o indivíduo, por mais justificada que possa parecer ou agradar, só é lícita se exercida dentro dos preceitos da lei. É a lei, e não a vontade de juízes ou das ruas, que determina os limites da ação do Estado.
A polêmica assistida ao vivo entre dois ministros do Supremo Tribunal Federal espantou a todos pela virulência e a sem-cerimônia dos diálogos. Mas ela não deve nos aturdir exclusivamente pela falta do respeito à “liturgia do cargo”. Ela é mais grave pelo que expõe de contradições com a missão constitucional do Judiciário.
Gilmar Mendes tem marcado sua gestão por declarações contundentes, inclusive sobre processos a serem ainda apreciados como juiz, mas não evita cair em suas próprias incoerências. Brada contra o “Estado Policial”, ao mesmo tempo em que instiga juízes, promotores e policiais a agirem fortemente contra ações de movimento social que reputa a priori como criminoso.
Embora nutra elogiável preocupação com o garantismo penal, fulmina em ações e declarações a idéia de independência judicial, responsável, em última instância, pela própria garantia que afirma defender. Afinal, que juiz sem independência pode defender o indivíduo dos excessos do Estado?
A gestão Gilmar tem assentado um poder sem precedentes ao STF. É certo que a Reforma do Judiciário aumentou sobremaneira a hierarquia jurisdicional, supostamente em nome da segurança jurídica e da celeridade dos feitos. Concentrou excessivos poderes no STF, para permitir uma rápida uniformização da jurisprudência. Mas, como se tem visto, os poderes têm sido usados para bem mais do que isso.
As súmulas vinculantes, que nasceram para diminuir litígios repetidos, se transformaram em oportunidades para criação de normas e imposição de valores. A Súmula das Algemas que o diga: não tem esteio em intensa discussão jurídica, não aliviou número de recursos, mas estampou a profilaxia judicial. Com o abuso deste instrumento, nossa Corte Suprema, que tem por competência dar a última palavra nos dissídios, vem se especializado em dar também a primeira.
Os parlamentares, desgastados pelos seguidos escândalos, e ainda mais pela contumaz omissão, não se mostram em condições de reagir à mutilação da sua própria competência.
O Conselho Nacional de Justiça, órgão criado para ser o controle externo do Poder, transformou-se, ele mesmo, em outra instância normativa. Legisla por resoluções não raro invadindo assuntos de competência legal.
A lei vem se tornando, assim, cada vez menos necessária, o que não deixa de ser um risco para a democracia.
Joaquim Barbosa, a seu turno, desfralda outro lado das ameaças à jurisdição.
Quer impor-se como o juiz criminal popular, aquele que ouve a voz das ruas. Não se distancia daqueles que apregoam manter um olho na lei e outro na realidade. Para quem a Constituição e as leis devem ser interpretadas, seguindo a vontade do povo. Mas quem, enfim, seria o legítimo tradutor desta vontade? É possível julgar um réu com base na voz das ruas?
Por detrás do rude enfrentamento, estamos diante de uma falsa questão. Os excessos verbais são o de menos no caso. É preciso responder ao debate das funções do Judiciário pela via democrática.
O Judiciário não deve subtrair o poder popular do Legislativo de formular as leis. Mas jamais pode sucumbir ao apelo da opinião pública e legitimar julgamentos populares. Nem somos ditadores nem seremos justiceiros.
Não devemos nos sentir obrigados a optar entre a soberba e o populismo, duas formas transversas de autoritarismo.
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