Extinguir o privilégio seria importante desestímulo a quem busca eleição para melhorar a situação processual
É significativo que tenha nascido da iniciativa popular a proposta de lei para evitar que políticos condenados possam se candidatar a cargos eletivos. Isso demonstra, pelo menos, a preocupação da sociedade com a qualidade dos seus representantes e o fato de que a população ainda não desistiu da política.
Iniciativa popular anterior já havia produzido a alteração do Código Eleitoral, ampliando as hipóteses de cassação do mandato. Em conseqüência, muitos prefeitos e alguns governadores vieram a perder seus cargos por ilícitos cometidos durante a eleição.
A Lei da Ficha Limpa ainda tem vários obstáculos pela frente, não se podendo descartar, inclusive, a questão judicial.
Na primeira vez que o tema de veto a candidaturas de políticos processados veio à baila no STF, foi barrado por ampla maioria –a Associação dos Magistrados Brasileiros queria possibilitar aos juízes impedirem as candidaturas pelos maus antecedentes dos candidatos. Os ministros indeferiram o pedido, ressaltando que não havia lei que autorizasse este veto.
O relator Celso de Mello, no entanto, rejeitou o assunto de uma forma mais ampla: invocou o princípio constitucional da presunção de inocência, válido para todo o direito; por conseqüência, nem a lei seria capaz de impedir a candidatura de quem não está definitivamente condenado.
Mas há nesse processo todo uma questão importante que está sendo esquecida.
O que leva muitos réus “ficha-suja” a disputarem as eleições é justamente a possibilidade de melhorarem suas situações nos processos criminais a que respondem.
Com a regra do foro privilegiado, um deputado federal, por exemplo, só pode ser processado no STF.
O processo que eventualmente estiver correndo contra ele perante um juiz de primeira instância é encaminhado à Suprema Corte assim que se elege, não importando a fase em que o processo se encontre.
Nem é preciso dizer dos percalços que isso provoca quando chega ao Supremo, a começar pelo longo tempo de tramitação que terá pela frente. O histórico de julgamentos criminais de autoridades no tribunal é praticamente inexistente –na semana que passou, o primeiro parlamentar foi condenado depois de 1988.
Mas o contrário também pode acontecer.
Terminado o mandato, o processo retorna automaticamente para a comarca de origem, mesmo que não tenha sido julgado.
Pior, o político pode alterar por conta própria o juiz de seu processo, se decidir renunciar ao cargo por alguma conveniência. Foi exatamente o que aconteceu com o deputado Ronaldo Cunha Lima, que renunciou em 2007, às vésperas de seu julgamento no STF. Até hoje, não foi julgado.
Muitos processos criminais prescrevem nesse vai-e-vem.
Tudo isso mudaria com o fim do foro privilegiado.
A questão já foi objeto de inúmeras discussões no Congresso e a cada nova legislatura parece que se torna ainda mais improvável. Não podemos esquecer que são os parlamentares e políticos seus maiores beneficiários.
Costuma-se alegar, em defesa do instituto, que o foro privilegiado protege o cargo e não o servidor.
Foi o que disse o ministro Cezar Peluso, presidente do STF, semana passada no Senado. Demonstrou o receio que um juiz de primeira instância pudesse julgar o processo de uma autoridade federal, como se autoridades não fossem falíveis ou suas falhas só pudessem ser vistas por autoridades ainda maiores.
Reproduzimos, com pequenas variações, a regra das Ordenações Filipinas, importadas da Espanha no século XVII, de que fidalgos de grandes estados e poder somente seriam presos por mandados especiais do Rei. É um típico caso em que se dá maior valor à noção de autoridade do que ao princípio de isonomia, com a diferença de que hoje a igualdade é um dos pilares da Constituição.
A função pública estaria mais bem protegida permitindo-se julgar e punir o mau administrador, o mau juiz ou promotor, o mau político, enfim, da mesma forma como a todos os demais cidadãos, com as mesmas leis e os mesmos juízes.
Extinguir o foro privilegiado seria importante desestímulo a todos os políticos que se acostumaram a utilizar as eleições como um eficiente método “limpa-ficha”.
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