Escolhendo artigos desta coluna para uma obra coletiva que se encontra em preparo, fui tomado por um certo desalento.
Dois anos depois é possível repetir cada um dos temas que abordei sobre o sistema penal e ainda seria necessário subir o tom. As críticas que neles expus tiveram muito menos prestígio do que os problemas que elas já vinham apontando.
Parafraseando Darcy Ribeiro, não queria estar do lado cujas ideias têm prevalecido.
Embora o postulado não se aplique apenas no âmbito penal, afinal a economia está repleta de culpados milagrosos, o certo é que a solução da maior parte dos problemas repousa nas mesmas mãos daqueles que os criam. Ou, no mínimo, o agravam.
O ministro da Justiça, por exemplo, não se poupa do mais agudo constrangimento ao propor um esforço concentrado para erradicar a maconha do continente. E o faz, simbolicamente, com a foto de oportunidade em que manuseia um facão sobre plantações suspeitas em país vizinho. Na mesma toada, ele, que é professor de uma renomada universidade brasileira, afirma que o país precisa mais de armas do que pesquisas.
A guerra às drogas disponibiliza um exército diuturno de jovens para alimentar facções criadas pela iniquidade de um sistema prisional deixado, ademais, ao próprio controle dos presos. Mas de nada mesmo adianta a pesquisa, se só o que pretendemos é aumentar o espaço da punição, tornar as penas mais rigorosas e militarizar o cumprimento das sanções.
Embora fácil, todavia, seria um despropósito limitar as críticas ao homem errado, na hora errada, no lugar errado.
Sim, Alexandre de Morais consegue reunir todos esses predicados. Outros com uma dose a mais de conhecimento e outra a menos de arrogância, certamente fariam mais sentido –como reconheceu a metade demissionária do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária que desistiu de tentar pensar onde o pensamento havia sido banido.
Mas é preciso admitir que já faz tempo que nossos governos, por certo desconhecimento ou motivos eleitorais, pela submissão à mídia ou por falta de coragem, têm cedido aos reclamos de uma opinião pública fortemente estimulada por sentimentos irracionais de vingança e punição. Jonathan Simon mostrou como democratas nos EUA, a partir do final dos anos 1960, abriram o caminho para leis penais que fizeram a alegria dos republicanos depois.
Mas ler os artigos que por aqui já passaram me obriga também a lembrar que há um fator relevante para o grande encarceramento, que está deslocado da disputa partidária e por isso ganha menos atenção. E ainda é pouco explorado dentro da academia: o fator juiz.
Não faz muito tempo, citei aqui um interessante pensamento do professor Pedro Serrano, segundo o qual, em países periféricos, como os da América Latina, as medidas de exceção, que subtraem o cumprimento do direito, não costumam ser explicitadas legalmente, porque a exceção já está inserida nas suas tradições, chancelada, muitas vezes, pela jurisdição.
Não é à toa que nutrimos uma incômoda convivência entre cláusulas pétreas que desenham um direito e processo penal de um Estado democrático e práticas forenses que remontam à permanência autoritária.
A prisão cautelar generalizada, a presunção inabalável de legitimidade da ação policial, o senso comum salvacionista de quem se vê digladiando pela preservação da família brasileira, enfim, tudo isso é parte cotidiana dos julgamentos criminais.
E mesmo em pontos sensíveis, que o Supremo Tribunal Federal registrou avanços, como o de perceber a irracionalidade do emprego cego do cárcere aos microtraficantes que o superlotam, parte considerável do Judiciário ainda continua afirmando a imperiosa necessidade de uma pena que não perca sua capacidade de reprovação, impedindo que a jurisprudência superior chegue a tempo aos acusados.
A adesão a uma popular, porém inconsequente política de encarceramento; o repúdio ético, mas desmedido e imprudente, em face da conhecida seletividade do direito penal; a omissão com os direitos de quem ingressa no sistema para cumprir não mais do que as sentenças que lhe foram impostas.
A atuação do juiz tem importante reflexo não apenas na contenção do sistema prisional, mas na própria limitação à violência policial, cujos números são reconhecidamente assombrosos.
Cada vez que o juiz encontra um fundamento para entender desnecessário o seu controle da ação policial, quando legitima uma busca sem mandado porque, afinal, encontrou-se droga na residência, ou condena com base em confissões informais do qual apenas o policial que prendeu o réu foi testemunha, dá aval para uma ação sem limites.
É um endosso que sacrifica tanto o réu quanto o juiz, que, na prática, se demite da função para o qual foi investido.
No curso dos anos de chumbo, o STF validava a confissão obtida nos porões, enquanto a tortura era uma prática de Estado, sob a alegação de que o valor do depoimento se mede pela credibilidade que tem, não pelo local em que é colhido.
Hoje ainda existe quem decida que o silêncio do acusado, uma das balizas contra a tortura policial, mesmo consignado entre as garantias mais fundamentais do indivíduo, pode ser interpretado contra o réu.
É um não-julgar.
Leis que limitem a prisão provisória, que excluam a privação da liberdade de réus primários, que estabeleçam sanções alternativas e restaurativas, que recomponham a efetividade da presunção de inocência.
Honestamente, não sei se estamos mais distante de conseguir um panorama legislativo desses ou de fazê-lo respeitar caso chegássemos lá.
De toda a forma, como vimos assistindo quase inertes ao desmantelamento do estado democrático, nada há que permita muito entusiasmo. O mais prudente mesmo era começar o terceiro ano dessa coluna com outro assunto…
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