Nepotismo, nomeações de livre provimento, foro privilegiado são todos filhos do mesmo mal: o uso privado da coisa pública
Poucos vícios têm penetração tão arraigada na administração brasileira quanto o patrimonialismo, forma de apropriação privada das coisas públicas, que está no cerne e no âmago de nossa fundação, e contra a qual a democracia republicana tenta, ainda em vão, lutar.
Fomos colonizados com capitanias hereditárias e até hoje encontramos maneiras de entregar parcelas significativas do Estado para fins e interesses eminentemente privados – sejam elas correspondentes a benefícios extraordinários, isenções fiscais a empresários, ou incentivos de toda ordem. É a recorrente cortesia com um chapéu que não nos é nada alheio.
A confusão se instaura, ainda, nos negócios públicos, nas concessões impregnadas pela pessoalidade, nas licitações dirigidas, na destinação de verbas por indicação de parlamentares, como se fossem titulares do orçamento.
A marca patrimonialista também é profundamente sentida na distribuição do serviço público, estruturado juntamente para evitá-la. Quando ela se instaura, como de regra, a partir do poder, podemos dizer que a se contamina pelo “corporativismo de cúpula”.
A prática tem pouco que ver com a atividade das associações de classe ou as lutas salariais do meio sindical. No “corporativismo de cúpula” é o próprio Poder que se movimenta, as instituições são levadas a operar em benefício de seus integrantes. Pode-se dizer que o “corporativismo de cúpula” está para o sindicalismo como o locaute está para a greve – com a agravante de que o que está em jogo é o erário.
No cotidiano do serviço público, esse “corporativismo de cúpula” é bem visível. O nepotismo sempre foi um de seus braços mais evidentes. A escolha de parentes para contratação em cargos de comissão é uma inequívoca apropriação privada da coisa pública, que foge aos princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade. Vem sendo exercido no país como um direito, quase uma extensão dos atributos do cargo.
A profusão de cargos de livre provimento é outro exemplo típico. A possibilidade de contratação livre de assessores é porta aberta para nepotismos de todos os gêneros, seja em relação a parentes, amigos ou afilhados políticos. No Executivo, a distribuição de tais cargos de há muito vem sustentando uma ampla gama de apoios parlamentares, negociada de forma praticamente mercantil.
No caso dos parlamentares, chega-se ao cúmulo de permitir a distribuição de uma “verba de gabinete” para contratação de assessores, como se fossem funcionários particulares, sem contar as hipóteses em que a verba se presta simplesmente a um salário indireto. Mesmo no Judiciário, a contratação de livre provimento é freqüente nos tribunais, ainda que o serviço a ser desempenhado seja eminentemente técnico.
O que tais cargos fazem é permitir que uma relação privada (confiança como compadrio) se sobreponha a requisitos essencialmente públicos (excelência do serviço, igualdade na contratação).
Outra danosa forma de autoproteção das autoridades é o foro privilegiado. De acordo com o status do membro de poder, tem ele o direito de ser julgado por um órgão superior da Justiça. O interesse pelo privilégio continua evidente, pois não é incomum constatar que vários réus disputam eleições com a finalidade de deslocar a competência de processos já iniciados.
Verdade que o foro privilegiado não é nada novidadeiro. É tradição no país desde as Ordenações Filipinas, época do Brasil colônia, em que fidalgos de grandes Estados e poder só seriam presos por mandados especiais do Rei. De lá para cá, tivemos a Declaração da Independência e a Proclamação da República, mantendo-se, no entanto, tal privilégio intocado, mesmo com a Constituição federal prestigiando a isonomia, desconhecida naqueles tempos de absolutismo.
Costuma-se dizer que a norma visaria a proteger o cargo, e não o servidor, mas não é o que acontece. A função pública estaria mais bem resguardada permitindo-se julgar e punir o mau funcionário da mesma forma como a todos os demais cidadãos, com as mesmas leis e os mesmos juízes.
Nesta quadra em que vivemos, não carece proteger as autoridades das vicissitudes do serviço público, mas, ao contrário, proteger o serviço público das vicissitudes das autoridades, pois elas é que são servidoras.
Eis aí o divisor de águas de uma postura institucional diante do corporativismo: os servidores públicos são contratados para servir ao público, e não servir-se dele.
Comentários fechados.