Enquanto cada um de vocês não tiver passos, minhas idas e vindas vão me doer
Com “A casa do amor”, apresentei aos leitores do Sem Juízo, a Defensora Pública paulista Mari Carrara, autora de linhas que emocionam. Como o relato que segue, a partir de sua primeira audiência, que demonstram o tamanho de sua sensibilidade.
Da primeira vez que vi você, Mari Carrara
A primeira vez que olhei nos seus olhos fiquei pensando que o amarelo talvez fosse de cigarro, e depois pensei na dificuldade com os cigarros, as disputas, as trocas, eu estranhei seus olhos tão secos. A segunda vez já não eram seus olhos, eram outros, mas eu já não sabia dizer a diferença, seus olhares tão opacos e de repente tão brilhantes quando fixam nos meus e eu não sei se sorrio
porque tenho medo de esmagar você, vocês, com a minha felicidade.
A primeira vez que olhei suas mãos inquietas nas algemas, a primeira vez que escutei o som das algemas tilintando enquanto você tentava assinar o cantinho da folha que entregavam apontando o lugar certo, e ali o seu nome em rabiscos semianalfabetos e seu olhar esperando a minha aprovação (Assinei certo?). Você escreveu o primeiro nome e me olhou e só depois escreveu o segundo nome, só depois do meu aceno com a cabeça, como se pudesse fazer alguma diferença, como se o seu nome pudesse fazer alguma diferença.
A primeira vez que troquei o seu nome com um nome qualquer, você me corrigiu num sorriso complacente, um sorriso que significava muita coisa, e naquele momento eu percebi quanta coisa você sabe, quanta coisa você sabe e eu não sei, quanta coisa você pode saber sobre mim, sobre tudo isso, e não há como enganar você, não há como dizer que vai ficar tudo bem. Naquela vez eu me senti completamente nua diante das suas mãos atadas e minha nudez era patética e não havia nada que nós dois pudéssemos fazer ali.
Na primeira vez em que eu vi você ouvir a sua sentença, a sua vida a partir dali, e os seus olhos tão secos, tão amarelos, foram enchendo daquele brilho doído, foram molhando quietos, imóveis, naquela vez alguma coisa mudou em mim para sempre. A primeira vez em que leram pra você a sua sentença, e já não era você, era outro, ou era outra, e não importa, não faz a menor diferença, a primeira vez que leram a sua sentença e nada mudou no seus olhos secos, naquele momento
eu tive medo de saber o que mais na sua vida era capaz de não fazer a menor diferença. E ali se instalou de vez, para sempre, uma dor que eu nunca senti, uma dor que só quem esteve tão perto de você pode sentir.
A primeira vez que eu sentei na sua frente, ao seu lado, ao lado de uma pessoa algemada, ao lado de uma pessoa puxada e levada pelas algemas, ao lado de uma pessoa presa, nessa primeira vez eu senti o abismo vertiginoso entre quem pode virar para o outro lado com um copo de café e combinar um cinema para dali a meia hora, e quem vai voltar para o lugar de onde trouxeram você. Desde a primeira vez em que eu pus meus olhos em você, meus passos têm um peso inédito,
um peso enorme. Desde o momento em que vi você, minha liberdade me dói em cada músculo, e cada passo que eu dou não tem sentido.
Enquanto você, enquanto cada um de vocês não tiver passos, minhas idas e vindas vão me doer, meus gestos serão difíceis, e minhas jornadas tão inúteis quanto a sua completa imobilidade.
Nossa, que relato emocionante! Parabéns pela sensibilidade. Desejo que existam mais e mais defensoras como essa, para poderem corrigir as inúmeras distorções existentes no sistema penitenciário brasileiro.
Um texto lindo sobre o preço de se ter um coração permeável…
Foi um indiciado, com longa folha corrida, que queria mudar que me mudou. Eu, ainda estagiaria da DP, passei o carnaval com aquele senhor na cabeça. Depois de longo processo, uma interpretação ultrapassada da juiza substituta (que o STF sumulou semanas depois) e uma DP que tb só estava de passagem e pensando no seu feriado, o colocaram e deixaram na cadeia no verão de 50 graus carioca. Justo eu que tanto aprendi naquela Instituição, q tinha o Defensor + integro do mundo, aprendi mesmo com "o marginal". Meses depois, ainda esquecido, eu impetrei HC em favor dele. Meu 1o HC, silencioso, sem falar nem com ele. Mas conhecia todo seu caso. Ele foi solto. Nem sei se está vivo, solto ou preso. Mas ali, estagiária da DP, véspera de carnaval, eu mudei. Um prisioneiro me mudou. E ele nem imagina. E nem lembro seu nome. Mas jamais me esqueci de seu rosto, seu olhar, suas desculpas, sua enorme cicatriz na garganta e sua preparação para uma condenação que ñ merecia mesmo. Ali nasceu uma brasileira indignada. Que sempre soube história, ditadura, guerras, direitos humanos e viajada. Ali, eu sai das teorias burguesas e me tornei ser humana. Posso morrer em qq assalto ou de bala perdida em qq momento. Mas jamais me curvarei as injustiças, descasos e falta de tempo. A DP tem q identificar esse íntimo em seus concursandos. Não cabem Defensores que odeiam pobres. Não combina. Não é sacerdócio, mas requer muita dignidade e superação essa função!
Obrigada, Marcelo Semer, em primeiro lugar pela atenção sempre carinhosa que dispensa às minhas perguntas cheias de dúvidas na internet.
Uma vez comente com você o quanto o admiro por escapar ao perfil de juiz que conheço até agora, aquele que vive não para cumprir sua função par a população, mas para burocracia e pela própria vaidade do cargo. desculpe me, foi co isso que lide até agora. Suas postagens e de outros que conheci através de vc para mim são uma lento.
Perdi o gosto pelo direito, mas ao ler seu blog e ao ler essa pessoa amravilhoas que se tornou defensora pública em favor do melhor trabalho para quem precisa, bate uma esperança de um mundo melhor,
Chorei muito, de alegria.