….com Número Zero, Umberto Eco destrincha manipulações da imprensa….

numero zero

 

 

Entrelinhas do jornalismo e teorias da conspiração, em uma fina caricatura do poder da mídia

 

 

Não são as notícias que fazem o jornal e sim o jornal que faz as notícias.

O que se segue na reunião do futuro periódico “Amanhã” é uma verdadeira aula de manipulação, descortinando-se mantos que o leitor menos atento pode não ainda não ter se dado conta:

A esperteza está em por entre aspas uma opinião banal e depois outra opinião, mais racional, que se assemelhe muito a opinião do jornalista. Assim, o leitor tem a impressão de estar sendo informado de dois fatos, mas é induzido a aceitar uma única opinião como a mais convincente”; “saber por juntas quatro notícias diferentes significa propor ao leitor uma quinta notícia”; “exercitem-se em fazer a notícia aparecer onde ela não estava ou onde ninguém conseguia enxergá-la”.

Com Número Zero, Umberto Eco destrincha, com genialidade e ironia, esse submundo da notícia. Uma redação fantasma de um jornal gestado para jamais ser publicado, com a mescla de repórteres de fofoca, agências de espionagem e um grande teórico da conspiração. Uma combinação deliciosamente provocativa, mas que nos permite conhecer algumas das entrelinhas menos explícitas do jornalismo.

A definição do leitor, o Homer Simpson da publicação, a insinuação que torce a verdade, sem chegar no perigoso campo da mentira sujeita à indenização, as pequenas histórias inventadas ou as grandes propositadamente esquecidas pelo caminho.

Número zero é o boneco de jornal que, no caso, se dirige a servir de chantagem empresarial. Mas que não se perca pelos desvarios da ficção. Exagerado como uma caricatura, o romance aborda com fino sarcasmo as relações entre a mídia e seus patrocinadores, a promiscuidade entre a propagada utilidade pública, que justifica boa parte do respeito e privilégios de imprensa e os interesses diretos de seus financiadores.

A ausência de um controle político sobre o ente corporativo que em si mesmo controla o poder; um agente de mercado que define pautas públicas e impõe comportamentos sociais; uma empresa que estraçalha reputações e comprime julgamentos. A excessiva concentração que subjuga o pluralismo.

Não faltam bons e atuais dilemas para discutir a mídia na democracia, e a democracia na mídia hoje. Mas como se já não bastasse a atualidade desta discussão, Número Zero ainda reserva aos leitores brasileiros, uma interessante coincidência, na abordagem prospectiva sobre a Operação Mãos Limpas -o romance se passa na Itália, em 1992- e as relações entre o ativismo judicial e a corrosão político-partidária, que leva à emergência ao poder do magnata da imprensa, Silvio Berlusconi.

O livro não se detém na política, muito menos no direito, de modo que passa ao largo da crítica sobre o esfacelamento do devido processo, a redução de direitos fundamentais e a produção do espetáculo em nome do combate à corrupção –que talvez se pudessem agregar por aqui à seletividade persecutória.

Mas que depois de uma pretensa limpeza jurídico-política e ainda um fascismo redivivo, a terceiro-mundização da corrupção tenha impregnado o país, como sugere o narrador, é algo que impõe, no mínimo, uma reflexão. Infelizmente, a vida real não permite, como no romance, produzir um jornal que possa falar do ontem como se ainda fosse amanhã.

Se por tudo isso, a leitura de Número Zero já seria recomendável, pelas teorias conspiratórias do jornalista Bragadoccio, o livro se torna obrigatório. Mesmo sem ter a estatura, e suponho a pretensão, de um mergulho filosófico-policial como foi o d’ O Nome da Rosa, os elementos alucinantemente encadeados bem poderiam render um thriller à la Código da Vinci sobre os destinos do corpo de Mussolini e a sobrevivência de agências fascistas nos dias contemporâneos.

Mas é, sobretudo, a delicada engrenagem que recicla mentiras em verdades e vice-versa que parece ser o mistério que agora mais incomoda o autor.

 

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