….dois séculos de atraso….

O artigo que segue é do jurista Marcio Sotelo Felippe* e faz um interessante paralelo entre a concentração de terra no Brasil atual e a existente na França, às vésperas da Revolução Francesa.

Diante de nosso longo atraso, Marcio alerta sobre a falta de reforma agrária no país: “é iniqüidade social, ignorância e desinformação”

Há 220 anos na França
(publicado originalmente no Jornal Juízes para a Democracia, edição 50)

Latifúndios ocupam cerca de 50% das terras, controlados por
uma pequena quantidade de proprietários.

2,8% das propriedades rurais são latifúndios e ocupam 56,7% da extensão
territorial agriculturável do país.

A primeira dessas afirmações refere-se à situação fundiária da França antes da Revolução Francesa. A outra ao Brasil atual. Não é possível, a priori, estabelecer a exata correspondência histórica das frases. Elas dizem a mesma coisa.

Em geral há dois obstáculos históricos importantes ao progresso social. Um, obviamente,
é constituído por interesses contrariados. Outro, a desinformação. A parte da população que
não teria absolutamente nenhum interesse contrariado por políticas públicas que proporcionassem uma racional distribuição da propriedade fundiária no país – pelo contrário, somente se beneficiaria dela – é deseducada e desinformada incessantemente
pela grande imprensa. Os movimentos políticos e sociais que lutam pela reorganização
fundiária como um objetivo estratégico para a sociedade brasileira são criminalizados,
associados à idéia de “caos” e de “desordem social” e mostrados como insensatos inimigos da
propriedade. Esta é a pedra de toque do atraso, da deseducação e da ignorância: a salvaguarda do direito de propriedade.

Comparar a situação fundiária do Brasil à da existente na França antes da Revolução permite colocar um mínimo ingrediente de racionalidade na questão. A herança da Revolução
Francesa, na ordem histórica, foi exatamente a de proporcionar a democratização da propriedade, controlada em grande parte pelo clero e pela nobreza, classes ociosas
que não somavam 3% da população francesa. A reforma agrária feita na
Revolução Francesa confiscou terras da nobreza e do clero, que foram divididas e vendidas para camponeses que tiveram 10 anos para pagar.

Alguém, em sã consciência, pode supor que sem essa reforma fundiária a França seria o que é hoje? Alguém, em sã consciência, poderia associar uma política social dessa natureza à
idéia de criminalidade, de baderna social e de violação da propriedade?

Alguém, em sã consciência, poderia supor que se tratava de uma revolução socialista que eliminou o direito de propriedade?

O truque insidioso que obscurece a questão consiste em operar com uma sutil confusão de idéias: colocar no mesmo plano o direito de propriedade, em si mesmo, como conceito
jurídico e fato social, com o direito de alguns proprietários. Justamente aqueles que usam o seu direito de propriedade indiferentes à finalidade social da terra. Assim como confiscar
terras de proprietários que as utilizam para, digamos, produzir drogas que lesam uma parte da população não ofende o direito em si à propriedade, equilibrar a distribuição de terras no
Brasil não tem absolutamente nada de ofensivo ao direito de propriedade.

Pelo contrário, fortalece, nesta quadra histórica e social, o direito à propriedade.

Está em curso há algum tempo (e haverá um plebiscito a respeito) a Campanha pelo Limite da Propriedade da Terra: em defesa da reforma agrária e da soberania territorial e alimentar.

A proposta consiste em introduzir na Constituição Federal dispositivo que limite as propriedades rurais em 35 módulos fiscais. Módulo fiscal é uma medida utilizada pelo INCRA,
correspondente ao necessário para o sustento de uma família de trabalhadores e trabalhadores rurais. O que estivesse acima disto seria incorporado ao patrimônio público1. Lembre-se que 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros origina-se da agricultura camponesa. O grande negócio agrário destina-se basicamente à exportação.2 Isto é suficiente para demonstrar a importância da proposta. Benefícios para a sociedade brasileira, justiça
social, incorporação de camponeses sem terra ao mercado capitalista, libertação de milhões
de brasileiros da iniqüidade das bolsas-famílias, desgraçadamente necessárias ainda, que não
fazem de brasileiros cidadãos produtivos providos de dignidade, mas meros beneficiários do
paternalismo estatal.

Admito a razoabilidade de se debater detalhes desta proposta. Pode não ser a ideal, pode ser aperfeiçoada, pode e deve ser debatida. Só o que não se pode mais é deixar de admitir a razoabilidade de se fazer agora, no Brasil do século XXI, o que a França fez há 220 anos. O
resto é iniqüidade social, ignorância e desinformação.

* Marcio Sotelo Felippe foi Procurador Geral do Estado de São Paulo e Diretor da Escola Superior da PGE

2 Comentários sobre ….dois séculos de atraso….

  1. Anônimo 20 de outubro de 2010 - 00:41 #

    Só pra me localizar. O módulo fiscal é expresso em hectare e é fixado por portaria do INCRA, municipio a municipio, levando em conta diversos fatores (descritos no artigo 4º da Lei 84685/80). A classificação é bastante diversa. Por exemplo, para Alta Floresta (MT) um módulo fiscal equivale a 100 ha.; para Cuiabá (MT) o módulo fiscal corresponde a 30 ha. Acho que é isso. Só não sei ainda o que é URL…

  2. Egídio Campos 20 de outubro de 2010 - 20:29 #

    Cumprimentos aos colegas Dr. Marcio Sotelo Felippe, e Dr. Marcelo Semer.
    […]
    Com absoluta razão Dr. Felippe diz que um truque insidioso coloca no mesmo plano o egoísmo dos latifundiários e o direito de propriedade. Já o próprio "direito de propriedade", que é o nascedouro formal-material de todo o corpo doutrinário do Direito no seio da humanidade, por si só — ontologicamente — fere de morte qualquer tentativa de se celebrarem igualdades entre as pessoas! O egoísmo de cada qual, travestido de tantas figuras socialmente aceitas NÃO O PERMITE…
    […]
    Assim pois, pragmaticamente, qualquer ensejo ao reequilíbrio social precisa passar pelo crivo da reforma agrária, uma reforma que seja bem articulada e, tanto quanto possível, socialmente justa. Eis o desafio! [Que a Revolução Francesa realizou há mais de dois séculos…]
    […]
    Para fins de esclarecimento sobre as matérias:
    [http://www.incra.gov.br]
    Que é módulo fiscal?
    Unidade de medida expressa em hectares, fixada para cada município, considerando os seguintes fatores:
    – Tipo de exploração predominante no município;
    – Renda obtida com a exploração predominante;
    – Outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam significativas em função da renda ou da área utilizada;
    – Conceito de propriedade familiar.

    [http://sempredireitoartigos.blogspot.com/2009/01/direito-agrrio-brasileiro.html]
    O Módulo Fiscal é uma figura jurídica criada com a Lei nº 6746 de 10/12/1979, com fim de viabilizar o cálculo do ITR (Imposto Territorial Rural). Não se deve confundir módulo rural com módulo fiscal, pois o primeiro é regional e o último, municipal, não sendo, portanto, utilizado para redefinir parâmetros na classificação do imóvel rural.
    O artigo 50 do Estatuto da Terra define, para cálculo do imposto, a alíquota correspondente ao número de módulos fiscais do imóvel.
    A Lei nº 8629 de 1993, em todo o seu contexto, classifica imóvel rural como módulo rural, conforme o artigo 4º:
    Art. 4º – Para os efeitos desta Lei, conceituam-se:
    I – Imóvel Rural – o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial;
    II – Pequena Propriedade – o imóvel rural:
    a) de área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais;
    b) (VETADO);
    c) (VETADO).
    III – Média Propriedade – o imóvel rural:
    a) de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais;
    b) (VETADO).

    Compreende-se, assim, que a propriedade rural tem classificações específicas para cada fim, seja o "módulo rural" — a medida adotada para o imóvel rural classificado como "propriedade familiar", a "fração mínima de parcelamento" aquela adotada por cada município e que compreende a menor parte possível da área e o "módulo fiscal" — uma figura jurídica criada com fim de viabilizar o cálculo do Imposto Territorial Rural.

    Assim, pelo uso do conceito equilibrador de "módulo fiscal" (ou de "módulo rural", se se preferir…), pode ser IMPLEMENTADA, COM CRITÉRIOS DE QUANTIFICAÇÃO, A NECESSÁRIA REFORMA AGRÁRIA.
    Aos latifundiários estas palavras não soarão agradáveis. TUDO O QUE ELES NÃO QUEREM É A TAL DA REFORMA AGRÁRIA, algo funesto (no entender deles) a lhes tirar… o SEU (seu???!!!…) direito! Por que a figura de rejeição? — hão de perguntar. Basta olhar, retrospectivamente, a história da humanidade, e constatar que TUDO NÃO PASSA DE UMA GRANDE INVASÃO. Belicosa, sangrenta, traiçoeira. Não há terra (no sentido de propriedade urbana ou rural de qualquer vulto) que não tenha, em seu "registro sucessório", pelo menos uma invasão. Muita gente morreu vítima desses egoísmos apropriadores. APROPRIADOR é o invasor que, passado o tempo, ganhou a alcunha social de PROPRIETÁRIO. Hipocrisia social. Vergonha humana.
    […]
    A reforma agrária, um novo pacto social, viria justamente reequilibrar tudo isso.
    […]
    Quem puder que conteste.

    Egídio Campos, AEC, Prof.
    egidiofc@gmail.com