O recurso à pauta religiosa como última cartada, era o que faltava nesta eleição despolitizada e visitada pelo submundo, preconceito e estimulo ao ódio.
Segundo os indicativos das pesquisas, não é possível saber com segurança, antecipadamente, quem ganhará as eleições.
Independente de quem vença, no entanto, uma coisa é certa: todos perderam.
A campanha eleitoral nos revelou várias surpresas, mas nenhuma delas agradável.
O panorama da eleição, visto de seu início, apresentava uma perspectiva de amadurecimento democrático.
Nenhum dos principais candidatos à presidência tinha vínculos com o regime militar. Um quarto de século depois da redemocratização e os políticos egressos da ditadura não mostram forças para disputar a presidência.
O que parecia ser vitória da democracia revelou-se uma farsa.
A condição de oponente à ditadura de Dilma Rousseff foi empregada à exaustão como forma de sua desmoralização pelos adversários.
Fichas policiais apócrifas foram distribuídas pela Internet, atribuindo à candidata ações das mais diversas e irreais, moldando falsamente os adjetivos de terrorista e assassina que se fariam circular pelo submundo da eleição.
2010 poderia ter sido o ano de resgate da verdade sobre o regime militar e as torturas praticadas em nome do Estado. Longe disso.
O STF pôs uma pedra sobre os fatos no julgamento da anistia, supostamente com o pretexto da cordialidade do povo e a necessidade de esquecimento do passado em nome da paz social. Mas impunes os agentes da ditadura, iniciou-se a desconstrução daqueles que lutaram pela liberdade.
A campanha eleitoral atingiu picos elevados de despolitização, em grande parte porque o alto prestígio do governo Lula desestimulou os candidatos de oposição a criticá-lo abertamente. Serra chegou a introduzi-lo em sua própria propaganda de TV.
Se a eleição teve um início morno, seu final tem se mostrado exageradamente caliente, mas sem perder a despolitização jamais. A campanha tratou de submergir na baixaria, na propagação de preconceitos e no estímulo ao ódio.
Uma visita tétrica ao passado que pretendíamos esquecer.
Em 1985, Fernando Henrique Cardoso era candidato a prefeito de São Paulo pelo PMDB, quando foi surpreendido no debate por uma pergunta do mediador Boris Casoy, indagando se acreditava em Deus. Hesitou na resposta e reclamou com o jornalista que lhe prometera não fazer essa pergunta de caráter íntimo. Candidatos nanicos a serviço do adversário lhe aplicaram a pecha de comunista e ateu e o sociólogo perdeu a eleição para um decadente Jânio Quadros.
Na disputa presidencial de 1989, o até então desconhecido Fernando Collor contou com a simpatia e algo mais da TV Globo, ensinando a todos o quanto a ajuda dos meios de comunicação podia desequilibrar uma eleição.
Mesmo assim, no segundo turno, seu adversário havia encostado nas pesquisas. A partir de então, Lula foi taxado de comunista e confiscador. Era representado como diabo vermelho nos cordéis nordestinos e se dizia que fecharia igrejas pelo país afora.
E se não bastasse o boca-a-boca maldito, uma ex-companheira foi contratada pelo adversário para expor intimidades no horário eleitoral.
Passadas mais de duas décadas, os fantasmas de Jânio e Collor voltam a assombrar marqueteiros em desespero.
Mentiras são disparadas por e-mails e as correntes do mal atingem em chofre o eleitorado classe média, onde estaria a maior parte dos indecisos.
Dilma foi a opção preferencial das pirâmides da infâmia: de matadora de crianças ao satanismo, passando por aleivosias sexuais, a candidata foi acusada de quase tudo.
No final, como bumerangue, partiu das redes sociais a revelação de um suposto aborto praticado pela esposa de Serra, que em campanha teria criticado Dilma por apoiar a ‘matança de criancinhas’.
Mas se a tecla do vale-tudo, usada como nunca nestas eleições, não fosse suficiente para degradá-las, ainda restava um último pesar.
Esvaziada das comparações ideológicas entre os candidatos, por opção ou incompetência, a campanha do segundo turno foi inteiramente tomada pela pauta religiosa. Proporcionou-se um atraso secular, que manchará a biografia de quem a introduziu como última cartada.
Mais de um século depois da separação de Estado e Igreja, a religião passou a ser a falsa questão central da eleição, desde que as pesquisas constataram que o tema sangrara Dilma às vésperas do primeiro turno.
Os candidatos comungaram, fizeram testemunhos de fé nas igrejas, beijaram terços e batinas e encheram propagandas de televisão com referências aos valores dignos da família cristã. Ao final, estavam comprometidos em manter o aborto como um caso de polícia.
As milhares e milhares de mulheres que morrem anualmente no país pela realização de procedimentos clandestinos, por falta de auxílio do poder público, que esperem mais quatro anos por outra oportunidade.
Vidas continuarão a ser desperdiçadas banalmente, porque um candidato achou que podia ganhar com esses votos e uma candidata receou perder por causa deles.
Recordações desonrosas da ditadura, invertendo os papéis da história. Fantasmas da infâmia elevando o submundo à condição de estratégia eleitoral. O Estado laico em risco, pela busca desesperada de um punhado de votos crentes.
Ganhe quem ganhar, esta terá sido, sem exageros, a pior eleição dos últimos tempos.
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Boa noite
Concordo e quero complementar, que com tristeza e sentimento de impotência, tenho que parabeniza-lo pela forma simples e objetiva que abordou um assunto tao "dolorido" para nós brasileiros, isto sem falar em como é vexatório.
Sou uma pessoa patriota adoro meu País, tenho orgulho da nossa natureza, mas infelizmente lendo seu comentário fico pensativa, e me calo diante de tanta falta de ética e vergonha em nosso Brasil quando o assunto é política.
As vezes falamos deste assunto na hora do almoço no trabalho, ou com os colegas e percebo que meu "fígado" e "coração" não aguenta mais, é triste mas concordo "esta é sem dúvida a pior das eleições das quais consigo lembrar" não que tenha tido alguma da qual me orgulho, mas desta vez infelizmente tenho que concordar. Que vergonha.
Dr. Marcelo,
Concordo com grande parte dos seus pontos de vista, só considero que a questão do aborto não pode estar jungida unicamente à vontade política do Chefe do Executivo.. Acho que é dever dos nossos congressistas, por intermédio de audiências públicas e seminários de fomento ao amplo debate com vários setores da sociedade civil, inclusive os fundamentalistas religiosos e preconceituosos que emergiram do "submundo" (como você bem coloca), debater e propor medidas e, caso se chegue a essa conclusão, propor a descriminalização do aborto, tratando a questão como um grave problema de saúde pública e não como mais uma via para abarrotar o falido sistema carcerário brasileiro.
É o que penso a esse respeito. No mais, parabéns pelas ponderações e pela forma que colocou o tema (de fato, esta campanha tem se mostrado despolitizada e até sórdida, em alguns momentos). O blog está muito interessante.
Sds,
Henrique Lopes – João Pessoa (PB)