Vender cosmético sem registro na Anvisa não é o mesmo que adulterar remédio
Segue decisão que proferi, absolvendo sumariamente réu acusado de ter em depósito, para venda, produtos cosméticos sem o devido registro na vigilância sanitária.
O legislador não é livre para fazer equiparações de pena que não guardem proporcionalidade –no caso, a adulteração de medicamentos e a venda de cosméticos sem registro (como também o seria se se tratasse por exemplo de equiparar furto e homicídio ou mesmo furto e roubo).
A infração ao princípio da proporcionalidade torna inconstitucional a previsão legal.
VISTOS.
Trata-se de denúncia formulada pelo representante do Ministério Público contra A.O.A.O, imputando-lhe a prática do delito capitulado no artigo 273, parágrafo 1º-B, inciso I, do Código Penal, porque teria, em 18 de setembro de 2008, na empresa Black-N-White, situada na Avenida São João, 439, Loja 28, nesta Capital, em depósito para venda produtos cosméticos sem os devidos registros no órgão de vigilância sanitária competente.
Citado o réu para o feito, a Defesa manifesta-se pela absolvição sumária, tendo em vista a atipicidade da conduta atribuída ao acusado, bem ainda a inconstitucionalidade, pela flagrante infringência ao princípio da proporcionalidade, com pena mínima de dez anos de reclusão, sem qualquer demonstração de perigo concreto.
Bem analisando a questão, observo que assiste razão à Defesa.
Denunciou-se o acusado AUGUSTO porque teria em depósito, para venda, em estabelecimento de sua propriedade (salão de beleza), produtos cosméticos importados, sem os devidos registros no órgão de vigilância sanitária.
Não há dúvida, ao menos no que atine à apreciação cabível a este momento processual, acerca dos fatos narrados. O denunciado, nigeriano, admitiu a importação dos produtos (em suas viagens e por aquisições pelo correio) e esforçou-se em juntar inclusive documentos comprobatórios das remessas postais; admitiu que comercializava os produtos em seu salão de cabelereiro e alegou desconhecer as exigências dos registros.
A perícia realizada não constatou nocividade ou alteração nos produtos, descrevendo-os, tão-somente: xampus, pomadas, cremes e condicionadores capilares (fls. 112/3).
De outra parte, juntou-se aos autos ofício encaminhado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária indicando que os produtos expostos à venda pelo denunciado fazem parte da relação de cosméticos a que se exige prévio registro (fls. 114/5).
A questão assim colocada não é de prova, mas de direito, e pode se resumir da seguinte forma: a ausência de registro é suficiente para que a conduta seja típica, nos termos da extensão que o §1º-B, I deu ao tipo do art. 273, §1º?
O caput do art. 273 tipifica a conduta de “falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”. Em razão da reforma produzida pela edição da Lei 9677/98, a esta conduta foi cominada pena de dez a quinze anos de reclusão. A evolução do tipo penal é conhecida, em legislação editada logo após o conhecimento público de falsificação de remédio para tratamento de câncer.
Ainda que a pena excessiva pudesse, de alguma forma, ser justificada pelo perigo efetivo que o medicamento adulterado (ou a ausência dele, no caso da comercialização de placebos) pudesse provocar em pacientes graves, as extensões previstas pela lei – notadamente àquela que equiparou a conduta em tela ao primeiro delito – é flagrantemente desproporcional.
O parágrafo 1º, da referida lei, equiparou aos medicamentos adulterados matérias-primas, insumos farmacêuticos e cosméticos; o §1º-B, I, trouxe à mesma conduta aos produtos indicados “sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária”.
Por certo, não se pode estender o tipo penal que prevê a falsificação e a adulteração de substância medicinal (ou empregada para fins terapêuticos) à conduta de ter em depósito cosméticos sem registro na vigilância sanitária.
Ninguém discute a necessidade dos registros de substâncias que podem ser nocivas à saúde (inclusive, como explicita a Anvisa, pelo contato de cosméticos com cabelos ou a pele), nem as consequências administrativas que podem advir da frustração dos registros, diante do poder de polícia da administração na tutela da saúde pública.
Todavia, no âmbito do direito penal, a equiparação de condutas tão díspares quanto adulteração de medicamentos e falta de registro de cosméticos, ambos submetidos à estratosférica pena mínima de dez anos (superior, como se sabe à do próprio homicídio doloso) é evidentemente desproporcional.
O legislador não tem a plena liberdade de estabelecer tipos e penas e lidar com equiparações e gradações como bem lhe aprouver.
Se fixasse a mesma pena para homicídio doloso e furto, por exemplo, estaria incidindo em inconstitucionalidade, pela violação do princípio da proporcionalidade, equiparando tutelas sensivelmente distintas. Mesmo quando se trata do mesmo bem jurídico, não pode equiparar condutas cuja vulneração revelam em si mesma gradações, como o furto e o roubo. Equipará-las significaria tratar da mesma forma situações tão distintas, desprezando o quociente de tutela que cada uma há de exigir. No meio do embate, a dignidade humana, ferida sempre que uma pena privativa de liberdade é cominada ou aplicada de forma desproporcional – sem atenção a limites de razoabilidade.
No caso em questão, não só a equiparação entre as condutas ofende a proporcionalidade, como a pena mínima de dez anos, em relação a uma conduta de suposto perigo abstrato (eis que nem sequer a nocividade dos produtos foi detectada) também caracteriza a violação ao princípio da proporcionalidade.
Quanto à incorporação do princípio da proporcionalidade no direito brasileiro, preleciona Paulo Bonavides: “No Brasil, a proporcionalidade pode não existir enquanto norma geral de direito escrito, mas existe como norma esparsa no texto constitucional. A noção mesmo se infere de outros princípios que lhe são afins, entre os quais se avulta, em primeiro lugar, o princípio da igualdade, sobretudo em se atentando para a passagem da igualdade-identidade à igualdade-proporcionalidade, tão característica da derradeira fase do Estado de direito (…) O princípio da proporcionalidade é, por conseguinte, direito positivo em nosso ordenamento constitucional (Curso de Direito Constitucional – Ed. Malheiros, p. 395/6).
A proporcionalidade estaria, incluída, portanto, na vedação de excessos, ínsita ao art. 37 da Constituição Federal e flui do espírito que anima em toda a sua extensão e profundidade o §2º, do art. 5º, o qual abrange a parte não-escrita ou não expressa dos direitos e garantias da Constituição. Conclui, assim, Bonavides: admitir a interpretação de que o legislador pode a seu livre alvedrio legislar sem limites, seria por abaixo todo o edifício jurídico e ignorar, por inteiro, a eficácia e a majestade dos princípios constitucionais. A Constituição estaria despedaçada pelo arbítrio do legislador (op. cit., p. 396).
Acrescenta Alberto Silva Franco, quanto à aplicabilidade do princípio da proporcionalidade no âmbito penal:
“Num modelo de Estado (Social) e Democrático de Direito, sustentado por um princípio antropocêntrico, não teria sentido, nem cabimento, a cominação ou aplicação de pena flagrantemente desproporcionada à gravidade do fato. Pena desse teor representa ofensa à condição humana, atingindo-a de modo contundente, na sua dignidade de pessoa. O princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se em consequência, uma inaceitável desproporção” (Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Ed. RT, 6ª ed., p. 39).
Miguel Reale Jr., em artigo sobre a Lei dos Remédios, explicita:
“Não há interpretação que possa ser feita para conformar a norma aos valores e princípios constitucionais. A interpretação congruente com a Constituição tem limites, pois deve-se neste esforço, para salvar a norma, analisar as possibilidades de ambos os textos, o constitucional e o a ser conservado, de acordo com o tê-los de ambos. Com relação à norma do inc. I do §1º-B do art.273, bem como referentemente aos demais incisos, frustra-se a tentativa de conservação dos dispositivos, porque para tanto seria necessário impedir a realização absoluta dos valores e princípios constitucionais. A aberrante desproporção entre a gravidade do fato de vender (…) saneante sem registro e a gravidade da sanção cominada impõe que se reconheça como inafastável a inconstitucionalidade da norma penal do artigo 273, §1º-B, I, do CP, introduzido pela Lei 9.677/98 e do art. 1º da Lei 9.695/98, em virtude de lesão a valores e princípios fundamentais da Constituição. O mesmo ocorre com relação aos demais incisos, excetuando o já aludido inc. IV.” (REALE, Miguel Jr. A Inconstitucionalidade da Lei dos Remédios. Revista dos Tribunais 763, São Paulo: RT, 1999, p.426 e 427.)
Em mesmo sentido:
“(…) é inadmissível equiparar a crimes hediondos, as condutas de vender, expor à venda, ter em depósito para venda, ou de qualquer forma distribuir ou entregar o produto (medicamento, cosmético, saneante) a consumo no estabelecimento de venda de cosméticos e saneantes (por exemplo, um mercadão de interior). O comerciante é preso em flagrante porque foi descoberto que referido produto era falsificado, passando a ser considerado um criminoso de alta potencialidade (hediondo). É inconcebível que o Direito Penal brasileiro dê condições a certos aplicadores da lei punitiva a exercitarem estes tipos. A vinculação de determinadas ações ao parágrafo 1º- A, estabelecendo que o produto genuíno, por ser vendido ainda sem registro competente, torna-se falsificação, ou porque a empresa que o fabrica altera qualquer quesito da fórmula original ou, ainda, mesmo sendo autêntico e com registro ter sido vendido por estabelecimento não licenciado, expressa grave desconhecimento do legislador.” (SEADI, Jorge Abdala. Crimes Hediondos e a falsificação de medicamentos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. P. 18).
Ainda, de mesmo entendimento:
“Foi nesse contexto que se aprovou a chamada Lei dos Remédios (Lei nº 9.677), que, além de ampliar os tipos penais, aumentou sobremaneira as penas dos crimes previstos no Capítulo III do Título VIII do CP. Em alguns casos, o aumento da pena foi tão absurdo a ponto mesmo de tornar-se inconstitucional, por violação da garantia do devido processo legal (CR, art. 5º, LIV) em seu aspecto substantivo (substantive due processo of law), que pressupõe o correto processo de elaboração legislativa e de qua as leis sejam proporcionais e razoáveis (são os denominados princípios da razoabilidade e da proporcionalidade)”. (Delmanto, Celso. & Outros. Código Penal Comentado. 7ª Edição. Editora Renovar. 2007. p. 692).
Tenho, pois, que a conduta atribuída ao denunciado não é típica, diante da ausência de indicação da nocividade dos produtos com ele apreendidos e, ao mesmo tempo, da inconstitucionalidade da equiparação do depósito de cosméticos sem registros com a adulteração de medicamentos.
Por estes fundamentos, ABSOLVO SUMARIAMENTE A.O.A.O, nos termos do art. 397, inciso III, do Código de Processo Penal, na redação que lhe deu a Lei 11.719/08.
P.R.I.C.
São Paulo, 18 de outubro de 2011
Marcelo Semer
Juiz de Direito
Transitada em julgado em 28/11/11
(linha 1) "absovendo"?????
Grato, Raphael, já corrigi.