Formação legalista impede operadores do direito de compreender o princípio da insignificância. O resultado é a liberdade valendo tão pouco
O artigo que segue foi publicado em versão impressa na Revista Retrato do Brasil e na versão eletrônica no site Nota de Rodapé. Discute a aplicação do direito nos furtos de bagatela e as violentas consequências para casos de tamanha insignificância, para questionar: quanto vale a liberdade?
[Leia também por aqui:
É um absurdo a liberdade valer tão pouco
Documentário mostra drama de mulheres presas por pequenos furtos]
Entre os milhares de processos que aguardam julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, está o pedido de liberdade, em forma de habeas corpus, de K. S. M., que morreu em maio deste ano, aos 24 anos, no hospital de custódia de Franco da Rocha, em São Paulo, por motivos ainda desconhecidos.
Semianalfabeta e com “déficit intelectual” (comprovado em atestado médico), K. passou a existir para o Poder Público quando começou a praticar pequenos delitos, sendo o último realizado em novembro de 2009, quando tentou furtar num supermercado duas latas de leite condensado, duas de leite de coco, quatro pacotes de gelatina, um desodorante e um creme hidratante.
Somados, os itens que colocou entre as vestes custavam, segundo o estabelecimento, 19,80 reais. Presa em flagrante, K. foi da delegacia direto para a Penitenciária Feminina de Sant’Ana. Com problemas de saúde, foi transferida para o Hospital de Custódia, onde morreu sem saber que a advogada Sonia Drigo havia abraçado seu caso. “A conheci completamente surtada no presídio. Gritava que queria ir para o Juqueri [hospital de custódia por onde já havia passado algumas vezes], porque sabia que lá ia ser medicada.
Os funcionários do manicômio contam que ela, quando estava em liberdade, ia visitá-los. Dizia que tinha saudade”, relata a advogada que até hoje luta para tentar provar que K. não era uma criminosa, mas uma pessoa que necessitava de tratamento.
Fundadora do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), Sonia milita desde 1997 em favor de mulheres presas e há cinco anos defende voluntariamente casos como o de K., tema desta reportagem, chamados de crimes de bagatela. Embora previstos na lei como infrações, esses delitos são tão insignificantes e lesionam o patrimônio de forma tão irrisória que não merecem a intervenção do Estado.
Maria Aparecida de Matos, presa por tentar furtar um xampu e um condicionador – produtos avaliados em 24 reais –, foi a primeira cliente de Sonia Drigo.
Lamentavelmente, Aparecida perdeu a visão de um olho no Cadeião de Pinheiros durante um rebelião, em 2004, antes de conseguir a liberdade, um ano e sete dias após ser detida. No episódio, uma boma de gás lacrimogêneo foi lançada contra as presas.
Uma delas jogou água no olho da Maria Aparecida. Essa “combinação” foi corroendo, lentamente, seu olho e a deixou cega aos poucos, por falta de atendimento.
Desde 2005, o escritório de advocacia Arrojo e Drigo atendeu mais de cem clientes em situações similares.
As histórias se repetem: mulheres que tentam furtar pedaços de carne, produtos de beleza e outros bens de valor ínfimo e que são presas. O perfil também é uma constante: pobres, com pouca instrução e nenhuma qualificação, muitas vezes, com distúrbiosmentais, e que terminam por encher as já superlotadas cadeias do País.
Segundo a advogada, normalmente, o pedido de liberdade é negado na primeira instância (decisão de um só juiz). “Quando entro com o pedido, tenho que torcer para cair para três dos 31 juízes que existem [no Fórum da capital de São Paulo]. Na média, 10% dos habeas corpus são concedidos”, explica. Quando recorre ao Tribunal, Sonia costuma ter mais sucesso. Mas muitas vezes é apenas nos Tribunais Superiores que ela consegue a liberdade de suas clientes, e, até a decisão, as acusadas cumpriram, antes da condenação final, uma pena que, em muitos casos, sequer lhes cabia.
Insignificância
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), se não for informado pelas autoridades competentes da morte da ré, julgará em breve o caso de K. É bem possível que sua tardia, e agora inócua, liberdade seja concedida.
A posição dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte do País, tende a inocentar quem pratica furto de bens de valor ínfimo. Para justificar a decisão, os ministros se baseiam no princípio da insignificância, que diz que o Estado deve se preocupar com crimes que têm potencial de efetivamente causar
lesão à sociedade.
Ao longo dos anos, os ministros traçaram algumas regras para aceitar a aplicação da insignificância: mínima ofensividade da conduta; inexistência de periculosidade social do ato; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão praticada.
Todos os 11 ministros do Tribunal já decidiram, em algum instante, pelo trancamento de uma ação penal (absolvição), por entenderem que o bem furtado, por seu pouco valor, não ofendia o patrimônio de quem fora lesado. Exemplo é a decisão da ministra Carmen Lúcia, em agosto do ano passado. “A paciente tentou subtrair de um estabelecimento comercial mercadorias de valores inexpressivos.
O direito penal não deve se ocupar de condutas que não causem lesão significativa a bens jurídicos relevantes ou prejuízos importantes ao titular doDecisões nesse sentido são recorrentes na Corte. Levantamento realizado pelo STF a pedido de Retrato do Brasil revela que os ministros do Tribunal julgaram em 2009 um total de 147 habeas corpus em que o princípio da insignificância foi argumentado. Embora
possa ser aplicado em matérias não penais, a grande maioria dos casos julgados pelo STF é de furto.
No ano passado, 45 pessoas foram postas em liberdade pelos ministros com base no princípio da insignificância.
No entanto, as instâncias inferiores ao Tribunal (o STJ em menor medida) resistem, em sua maioria, aaplicar a mesma jurisprudência. Para o juiz e professor de direito Marcelo Semer, a negativa dos magistrados e
desembargadores em seguir o posicionamento do STF está relacionada ao modo como a lei é ensinada no Brasil.
“Os juízes, como quase todas as pessoas formadas em direito, têm uma perspectiva muito legalista. Eles se preocupam exageradamente com a lei e muito pouco com os princípios constitucionais. A regra acaba valendo mais do que o princípio, quando, na verdade, é ele quem direciona as regras”, argumenta. O pensamento “positivista” imposto nas faculdades faz com que seja difícil a compreensão exata do que a Constituição identifica como princípios fundamentais, avalia Semer.
Ele é voz dissonante entre os juízes criminais da capital de São Paulo. Via de regra, os magistrados paulistas não seguem o entendimento do STF nos casos de crime de bagatela. “Para muitos, vale o que está ali escrito. É o que acontece no caso da bagatela. Os juízes dizem que não existe uma regra que permita reconhecer a bagatela, porque não está escrito no Código Penal. Então, você chega ao absurdo em que a liberdade de uma pessoa custa fração de real.”
O juiz conta que, em 2008, julgou o caso de um pintor que tentou furtar um pincel. “Tive que ligar para estabelecimentos para saber quanto valia aquilo, porque nem estava no processo.
O valor do bem era de 1,67 real. Ele fez aquilo para trabalhar”. Semer calcula que, em média, julga de dois a três casos de crime de bagatela por mês. Ele é um dos 31 juízes criminais da cidade de São Paulo.
Um dos argumentos dos magistrados que resistem a aplicar a insignificância em casos como os já citados é a subjetividade do princípio. “Nada no direito é objetivo. Quando o juiz aplica a prisão porque acha que o réu pode fugir, pode prejudicar a colheita de provas, isso não é objetivo. O fato de ser subjetivo, de nós [juízes] termos que analisar o caso concreto, faz parte do direito. Julgamos casos, não hipóteses.
Esse é o azeite que o magistrado tem que fazer. Fazemos isso em todos os casos”, rebate Semer.
Cadê o prejuízo?
De acordo com o entendimento do STF, um dos requisitos para que um furto seja considerado insignificante é que ele tenha representado pouco ou nada para a vítima. “Se você furtar 40 reais de um camelô que trabalha o dia todo para ganhar esse dinheiro, aquilo é muito significante para ele. Se você furtar 40 reais de um hipermercado, não representa nada”, explica o defensor público Gustavo de Almeida Ribeiro.
Há nove anos na Defensoria Pública da União e com atuação no STF há três, Ribeiro diz que é bastante comum chegar ao mais alto Tribunal do país casos como o de K. – na maioria dos casos é a Defensoria quem advoga pelos réus, que não têm condições de pagar por um advogado particular.
Para Ribeiro, é desproporcional que situações como essas precisem movimentar os ministros da máxima Corte brasileira. “Até chegar ao Supremo, um furto de bens de valores irrisórios, um crime cometido sem violência e ameaça, passou por diversas instâncias. Invariavelmente, o custo do processo ultrapassa o valor do bem furtado”.
Ribeiro entende que uma mudançade atuação dos juízes e tribunais inferiores “pouparia” defensores, membros do Ministério Público e ministros de muito trabalho, e possibilitaria que eles se debruçassem sobre situações que representem, de fato, perigo à sociedade.
Dados da Abras (Associação Brasileira de Supermercados) apontam que os furtos externos são a terceira maior causa de prejuízo – representam 14% do total. As quebras operacionais (produtos que perecem ou estragam no transporte ou na exposição) são responsáveis por mais da metade das perdas (51,5%), enquanto os furtos internos significam 14,3%. Os produtos mais furtados, de acordo com a Abras, são bebidas (12%), chocolates (11%), aparelhos de barbear (10%), carnes (7%) e desodorantes (6%).
Segundo a associação, 87% dos supermercados do país possuem circuitos internos de TV e 69% deles investiram mais no último ano em segurança do que em 2008. O faturamento anual dos supermercados no país foi de 177representaram 2,33% desse montante, ainda de acordo com a Abras.
O que pode ser feito?
Tramitam no Congresso três projetos de lei que propõem alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal. Um deles é o PL 6.667, de 2006, que sugere a inclusão do princípio da insignificância no artigo 22 do Código Penal (que trata do furto). “O objetivo deste projeto é inserir o princípio da insignificância no Código Penal, para afastar a tipicidade de comportamentos causadores de danos de pouca ou nenhuma importância, que não causam lesão ao bem jurídico tutelado pela lei penal”, explica o deputado Carlos Souza (PP-AM), autor do projeto.
Já o PL 908, de 2007, elaborado pela Comissão de Legislação Participativa, propõe a alteração do artigo 23 do Código Penal para que seja considerada “atípica a conduta incapaz de ofender bem jurídico tutelado pela lei penal”. Por fim, o PL 7013, também de 2006, de autoria do deputado Fernando Coruja (PPS-SC), propõe alteração no Código de Processo Penal para proibir a prisão em flagrante quando o delegado de polícia
verificar a prática de um furto de valor insignificante.
Os projetos estão na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados desde 2008. Em março deste ano, um conjunto de ONGs encaminhou ao Ministério da Justiça e ao Conselho Nacional de Justiça um documento em que pedem a alteração da legislação penal para que se inclua o crime de bagatela. Ainda não houve resposta.
Para Samuel Friedman, advogado da ONG Conectas, mais do que alterações
na lei, seria necessária uma “mudança de mentalidade” dos juízes para que situações como as de K. e Maria Aparecida não se repitam. “Em nenhum aspecto pode ser benéfico manter presa uma pessoa que pratica esse tipo de infração”, argumenta. A Conectas representa Maria Aparecida no processo que ela move contra o Estado pela violação sofrida (a perda da visão) durante a prisão. O pedido de indenização por danos morais e materiais foi feito em janeiro de 2009, mas ainda não houve uma decisão.
Além do caráter reparatório da indenização, Samuel ressalta a importância da condenação como “ônus político”, ou seja, o reconhecimento da Justiça de que o poder público violou direitos humanos. “O caso da Maria Aparecida é emblemático, mas, infelizmente, é comum que pessoas sejam presas por crimes de bagatela. Há uma política do encarceramento no país.”
A mudança de mentalidade citada por Friedman poderia começar pelos delegados que efetuam a prisão em flagrante. A Constituição Federal prevê que, se a autoridade estiver convencida de que não há um crime, ela pode dispensar a prisão. “O delegado pode deixar de prender em flagrante, registrando a ocorrência num boletim e dando sequência ao inquérito policial. É raro, mas acontece”, explica Sonia Drigo.
Não há estatísticas sobre quantas mulheres estão presas atualmente por crimes de bagatela. Segundo os dados do ano passado do Ministério da Justiça, o crime de furto é o segundo mais praticado pela população carcerária feminina. Representa 9% do totalde transgressões à lei, atrás apenas do tráfico de entorpecentes (59% do total). Ainda de acordo com o MJ, no ano passado, havia pouco mais de 31 mil mulheres no sistema penitenciário brasileiro. No caso da população masculina, o furto representa 16% de uma população carcerária que ultrapassa os
440 mil presos.
A advogada Sonia Drigo fez um levantamento sobre os casos em que atuou. De 74 processos, em apenas oito deles a ré foi condenada à pena de prisão em regime fechado (em presídio). Sete foram condenadas a cumprir pena em regime semiaberto (colônias agrícolas) e outras sete em regime aberto (quando o preso só dorme na prisão). Em outros 21 casos, a pena foi de restrição de direito ou multa. Em 17 processos, as acusadas foram absolvidas, e em sete, as penas suspensas. Em cinco situações, as penas prescreveram.
Na grande maioria das situações, as presas não puderam aguardar a decisão da Justiça em liberdade.
Culpado por ser pobre
Recentemente, Sonia Drigo abriu uma exceção e interveio no caso de um homem – por questões de falta de estrutura, ela só advoga para mulheres. O catador de papéis M.S.V. foi preso em novembro de 2009, acusado de tentar furtar fios de cobre – sequer há no processo o valor do bem. Alega que estava na companhia de outro morador de rua que tentou cometer o delito. O catador de papéis já cumpriu praticamente a totalidade da pena imposta pelo juiz de primeira instância (de dez meses e 26 dias) sem ter sido condenado em definitivo – sua defesa recorreu da condenação. “A única coisa que esse homem tinha era uma carroça.
Quando sair da cadeia, nem isso ele vai ter. Como você acha que ele vai sair de lá?”, questiona a advogada. Para Sonia, há um ranço da parte dos juízes e membros do Ministério Público com o pobre. Ela conta que na defesa de uma mulher que tinha tentado furtar um CD em uma loja o juiz questionou a ré sobre a “qualidade” do produto.
“Era um disco importado, se não me engano, do Bon Jovi. Se fosse do Chitãozinho e Xororó, era compreensível para ele, mas como era de um cantor estrangeiro…” A acusada não tinha um aparelho para escutar o produto. “Ela tinha 46 anos e nunca havia praticado um crime. Entrou na loja e pegou qualquer coisa. Dá para dizer que é uma criminosa?”, diz Sonia.
Privar uma pessoa do direito de ir e vir deveria ser a última alternativa, explica Marcelo Semer. “As pessoas acham que, se há aumento nos crimes, devemos tornar as penas mais severas. Mas, na verdade, se a pessoa chega ao crime é porque alguns dos outros controles já falharam: a família, os amigos, o emprego. E quando essa pessoa volta da cadeia, a possibilidade dela reconstruir esses laços é menor ainda. O laço do emprego, por exemplo, já foi”.
O juiz também questiona o distanciamento de seus pares com a realidade. “Parece que nós [magistrados] somos reprimidos quando queremos ter contato com movimentos sociais, conhecer a realidade. O juiz se encontra com banqueiros, participa de congressos organizados por bancos, mas se ele se encontra com
movimentos sociais está participando de ato ilícito”, finaliza Semer.
Muito bom ter a oportunidade de semanalmente ler os novos posts do site, quem dera se todos que militam na área do Direito tivessem contato com tão bom material.