Pesquisa sobre política de extermínio conclui que “polícia mata, mas a justiça enterra”
Na semana que passou, Osasco, na grande São Paulo, amanheceu com a notícia de uma grande chacina. Dezoito pessoas foram mortas a sangue frio.
As investigações da polícia civil se iniciaram apontando para uma possível vingança de policiais militares a um latrocínio ocorrido na semana anterior. O modus operandi das execuções, a separação de vítimas por antecedentes criminais, as armas privativas, detalhes de calçados flagrados nas câmaras ajudam a engrossar a hipótese, que levou inúmeros PMs a serem ouvidos nos dias que se seguiram ao massacre. Guardas municipais também foram chamados pela polícia.
Ninguém deve ser punido antes de culpa formada, e as investigações se apresentam ainda na fase embrionária. O que espanta é justamente o fato de que a hipótese aventada não espanta mais ninguém.
Em condições normais, policiais e agentes da segurança seriam os últimos suspeitos de matar friamente pessoas em ruas ou bares. Mas, por episódios pregressos que se avolumam, os homens da lei passaram a ser cidadãos continuamente sob suspeita.
Não bastassem inúmeros outros casos em que as execuções policiais se confirmaram contra pessoas humildes da periferia, e até mesmo autoridades (como o caso da juíza carioca Patrícia Acioli), as mortes arquivadas como confronto crescem de forma incessante. Nesta mesma semana, saiu relatório que aponta essa evolução. O número de mortos pela PM em São Paulo no primeiro trimestre foi de 185, o maior em doze anos.
Há um misto de resignação e conformidade com o fato, explicável pelo bordão“bandido bom é bandido morto”, palavra de ordem dos supostos homens de bem que justifica, quando não estimula, os novos esquadrões da morte.
Ter antecedentes criminais, essa figura sem forma que reúne penas cumpridas e indefinidas passagens policiais, costuma ser uma licença segura para a ação policial -18 mortos, 12 inocentes, dizia a manchete de um programa policialesco de fim de tarde que distingue com louvor as execuções supostamente em nome da mesma lei que estraçalham.
No cotidiano do sistema penal, autos de resistência seguidos de morte costumam ser a forma jurídica que embalam os homicídios policiais, nos quais se julga basicamente a vítima. Pouco importa que o país tenha, em sua Constituição, a proibição da pena de morte, da prisão perpétua e das penas cruéis e tratamentos degradantes. Morte sem pena e tortura sem processo abundam no desgoverno da repressão.
A naturalidade como isso é recebido na sociedade é, no mínimo, impactante. Legado de nossa tradição autoritária ou fruto do populismo penal que engrossa o medo e a urgência. Tudo faz com que a criminalidade seja vista de tal forma macabra e aterrorizante que para combater esse fim todos os meios seriam válidos –inclusive os da própria criminalidade.
Ninguém resumiu melhor o reflexo do medo sobre a cidadania do que o escritor moçambicano Mia Couto, na Conferência do Estoril:
“Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania”.
Mas o problema ainda maior reside no próprio sistema penal, explica Orlando Zaccone, delegado de polícia no Estado do Rio de Janeiro, em seu Indignos de Vida (ed. Revan, 2015), recentemente lançado. Com uma pesquisa jurídica que amparou a apresentação de tese de doutorado na Universidade Federal Fluminense, Zaccone demonstra como promotores e juízes acabam por contribuir com a construção de uma política de extermínio.
Depois de analisar centenas de arquivamentos de inquérito de homicídios policiais travestidos de autos de resistência, nos quais a legítima defesa é quase sempre presumida, réus tornam-se testemunhas e as vítimas julgadas novamente, constata que o fato de ter antecedente criminal transforma uma imensa população em pessoas de vidas matáveis -na categoria de Giorgio Agamben.
Ou, como se lê de uma das promoções de arquivamento acolhidas pelo juízo:
“Aqueles que jamais subiram morros, favelas ou sequer conhecem de perto os antros frequentados por marginais, e que se enclausuram em seus gabinetes sem que nunca tenham participado de tiroteio, seja no estrito cumprimento do dever legal ou também em legítima defesa, não devem se apegar com antolhos ao texto gélido da lei, distante do calor dos acontecimentos e a salvo de gravíssimos riscos, na busca do enfraquecimento ou do desestímulo das atividades de Polícia Judiciária”.
A mesma lei que justificaria um interminável volume de prisões, exigidas pelos próprios promotores, torna-se apenas um texto gélido e distante do calor dos acontecimentos, dispensável enfim, quando a questão é julgar agentes da segurança que a infringem.
Conclui o autor: a polícia mata, mas a justiça enterra.
[artigo publicado originalmente na Coluna Contra Correntes do site Justificando]
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