Princípios constitucionais devem ser cumpridos, mesmo quando aparentemente indesejáveis.
Quando do empate da votação da Ficha Limpa, em setembro de 2010, escrevi para o Terra Magazine a coluna: O que os juízes devem e o que não devem decidir. Do artigo, extraio o seguinte trecho que se mantém atual:
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Mas isto nem de longe significa que se deve demonizar os ministros que votaram contra a Ficha Limpa, numa espécie de macarthismo social.
Seria simples demais dizer que são “inimigos da sociedade”, ou que usam a lei em prejuízo da democracia. Simples e equivocado.
O Congresso tinha plena ciência de que a lei deveria ser votada um ano antes das eleições para que pudesse valer para esse pleito. Ao aprová-la sem atentar para este fato, os parlamentares simplesmente jogaram a discussão para o Judiciário, sem explicar à sociedade que havia grande chance de frustrar suas expectativas.
Princípios constitucionais devem ser cumpridos, mesmo quando aparentemente indesejáveis.
Se o intuito do projeto era justamente impedir o acesso aos cargos públicos a quem viola a lei, ela jamais poderia ser construída sobre uma violação.
É mais fácil e mais cômodo julgar para a platéia. Mas um juiz que decide exclusivamente conforme pensa a opinião pública não cumpre sua função. O fato de que a lei seja um anseio da população não a transforma em mais legal -fosse assim, passaríamos por cima das diversas cláusulas pétreas e estaríamos jogando fora a lei mais importante de todas, a Constituição.
Mérito indiscutível da Ficha Limpa foi seu efeito mobilizador. Os eleitores demonstraram a preocupação com o caráter e a probidade de quem vai ser eleito. Isso é indispensável e insubstituível para uma boa escolha. A queda de Joaquim Roriz nas pesquisas antes do julgamento deixou indícios de que os eleitores já estavam suficientemente esclarecidos.
Mas o demérito da lei, e não se deve escondê-lo, é a preocupação exageradamente paternalista que sugere. Precisamos de alguém que nos impeça de votar nos ruins, porque não seríamos capazes de fazer isso por conta própria.
É ilusão achar que alguém poderá fazer a democracia pelo povo.
Se partirmos do princípio que o povo não sabe votar e, portanto, precisamos de quem decida por nós, estaremos esvaziando e não fortalecendo a democracia.
Hoje os juízes decidem quem tem e quem não tem ficha limpa. Amanhã, decidem quem tem ou não tem capacidade para legislar. Mais tarde, vamos esperar que escolham por nós quem são os melhores.
A lei da Ficha Limpa aumenta enormemente o poder dos juízes, ainda que boa parte das pessoas não tenha se dado conta disso.
Na democracia, no entanto, cada um deve exercer a sua própria competência, e a eleição é de competência do povo.
Dos juízes, não se pode esperar que escolham ou decidam em nosso lugar.
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É por esta e por outras que o judiciário está assoberbado de tarefas. Se o Congresso tinha pleno conhecimento que a lei só se aplicaria na próxima eleição, por que enviar a decisão ao judiciário? Só mesmo a vontade de não assumir nada é que pode explicar…