….seis balas….

 

 

 

“O opressor carrega em si sua própria destruição”

 

 

 

 

Quem escreve no Cultura Sem Juízo hoje é a socióloga Ana Liesi Thurler. Com
base em um fato triste e real, ocorrido no interior do Rio Grande do Sul, nos anos 80,
Ana fala da opressão de gênero que permanece até os dias atuais, que se reproduz em mais violência. Escrito em
homenagem aos  “Dezesseis dias
internacionais de ativismo pelo fim da violência contra a mulher”.

 

 

SEIS BALAS –   Ana Liési Thurler*

 

Para Cecília, que me permitiu
anunciar a esperança de uma  sociedade
sem opressores, nem oprimidas.

 

“Em sua infância,
comprimiram seu corpo, seu coração, seu espírito, num espartilho de princípios
e interdições. Ensinaram-na a apertar ela mesma, com firmeza os cordões.
Subsistia nela uma mulher corajosa e arrebatada; mas contrafeita, mutilada e
estranha a si própria.”

Simone
de Beauvoir
, em Uma morte tão suave

 

 

O telefone estridente me trouxe a notícia que escandalizou a cidade e
estarreceu a família. Só sei que me deu esperança. Uma ordem que parece eterna.
Presidida por um equilíbrio perfeito, mas precário. Quem pode suspeitar que
esconde estranhos roedores em escondidos escaninhos? Até que um dia…. pois
há, felizmente um dia. Vai se gestando no silêncio, nos porões e mesmo à luz
mais meridiana. Vai se fazendo esse dia. O velho se rompe e a ordem desaba. O
equilíbrio frágil se esfacela. Há, felizmente, um dia. Às vésperas do século
XXI, Gil espreitava Godot: “ET e todos os santos, valei-nos, livrai-nos deste
tempo escuro.”

Cecília explorada, esquiva, esperando Godot. A vida inteira Cecília esteve
exposta a constantes apelos. O pó em todos os cantos, o bolo esfarelado sobre a
toalha estampada, o vestido esgarçado, as crianças sempre esfomeadas… uma
esganação. Espinafres, espigas de milho, ovos estrelados. Tanto esforço! Um
esfregar sem fim: pernas de criança, vidraças de janela, chão de cozinha. Dele
Cecília passou a detestar até os menores gestos. Cada um dizia do tamanho, da
força e do poder de José.

Incomodava-a quando ele tomava chimarrão na varanda, escarrapachando-se na
espreguiçadeira. Fazia escudo com suas panelas e atrás delas de escondia.
Buscava proteção do olhar que queria esquadrinhar seus porões. Da palavra que
queria escarafunchar sua alma. – Agora, não ! Agora precisava estar atenta para
o leite não derramar, para o feijão não queimar. Entre escumadeiras,
espanadores, escovas, ela passou a vida. A espuma no tanque nunca engoliu a montanha
de roupas. Não tinha escapatória: se uma criança espirrava, lá vinha um
esbregue…. “tu não cuida dessas crianças!” E humilhações e espancamentos. A
mulher, mão-de-obra doméstica gratuita. Reprodutora. O corpo carregando todas
as marcas. Dos hematomas às estrias, às varizes. A alma carregando tantas
marcas, tantas sombras….

O inverno contaminou todas as estações e sua vida mergulhada em neblinas.
Um esfriamento tomara conta dela. Inútil achegar-se ao fogão a lenha. O
encolhimento da mulher é o preço da estabilidade dessa ordem, que se quer
intocável. “A vida é assim mesmo”…. dizia lembrando a mãe, Luiza, imagem de
mulher. Cecília tantas Marias. Na minha memória mais distante, lá está a mãe de
Cecília, como um duende sem jamais deixar de fazer prognósticos sombrios. Em
todas as suas palavras estava entredito: não há óculos cor-de-rosa que esconda
a maldade e a feiúra do mundo. Um coração amargurado abrigava os princípios
rígidos que defendia.

Essa genealogia feminina Luiza se curvara a todos os padrões que a
esmagavam, como esmagaram sua mãe Antonia, sua avó Francisca. E Luiza
acreditava ser sua missão passar esses padrões para suas filhas. Na escola da
obediência, quem estrilaria? – Vida de mulher é assim mesmo, não tem nada que
reclamar! – Homem é diferente: homem é homem !

Cecília espoliada ex-modelar esposa, ex-oprimida. José, a imagem do gaúcho,
grande e forte, comendo churrasco gordo. Vaidoso, bigode enorme, cabelo
organizado com brilhantina, peito estofado. Ao menos em seus domínios, precisava
se sentir forte. Era lá que destilava sua ira, distribuía murros, cobrava de
Cecília tudo que a vida lhe sonegara. Nem suspeitava, mas caminhava rumo à
catástrofe. O opressor carrega em si, também sua própria destruição.

Apanhar fazia parte da vida de Cecília, oprimida pelo oprimido. Nada fazia
contra aquele estado de subjugamento. José há muito dormia com o revólver
debaixo do travesseiro, ameaçando matá-la, em caso de suspeita de ela pretender
deixá-lo. Até José chegar ao último ponto suportável de apropriação. A vida
física é o limite. Cecília se entregara sem reservas nem alardes, mas sabia ser
um dever buscar a sobrevivência. Com isso, inesperadamente reagiu.

Anoitecia naquele 3 de dezembro de 1983, no interior do Rio Grande do Sul.
Ele decidia sobre a vida e a morte dela e anunciou que a hora chegara. Abriu a
gaveta onde guardava o revólver. Foi até a porta da sala, chaveá-la. Nesse
mesmo tempo, ela encheu-se de coragem, pegou o revólver na gaveta aberta e
correu para a porta dos fundos.

Transtornada, resistiu a entregar-lhe a arma que ele tentava recuperar. Com
força multiplicada, manteve a arma e misturou ao apito do trem que passava,
seis estampidos que o bairro silencioso não compreendeu. Vinte e quatro anos de
casamento, conforme todos os cânones. Até que a morte os separou. Cecília nunca
infringiu nenhuma regra do jogo. Nem as discutiu. Até que ela quase se viu com
a vida roubada.

Os cinco filhos depuseram e testemunharam a favor de Cecília, em 03 de
setembro de 1987, no Tribunal em que ela foi julgada e absolvida. A última
oprimida, representação do encolhimento humano, da humildade mais radical, da
auto-estima mais destroçada, destrói seu opressor.

Quebra-se a cadeia da dominação? Não sei. Sei que o ser humano é um bicho
estranho, que traz sempre consigo a capacidade de surpreender. Por mais
submetido, sobrevive sempre em alguma secreta região, um espaço de liberdade e
a possibilidade de dizer “não”.

 

* Ana Liési Thurler é socióloga,
doutora em Sociologia das Relações Sociais de Gênero, filósofa e ativista
feminista

 
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