Perderam aqueles que insistem em tratar a liberdade como um perigo, o direito como um risco à ordem pública
Deve ser saudada, como uma lição de democracia, a decisão do STF que entendeu legal a realização da Marcha da Maconha.
Confirmou a prevalência dos direitos constitucionais à liberdade de expressão, de reunião e manifestação, que não haviam sensibilizado outras autoridades, e ainda afirmou em alto e bom som a diferença estratosférica entre defender a mudança da lei e praticar apologia ao crime.
Se defender mudança de lei fosse crime, o direito todo seria uma grande cláusula pétrea que nos cobriria e sufocaria.
Imagina, como lembrou Celso de Mello, quando a capoeira era crime… Certamente devia haver quem sustentasse a proibição da discussão de sua legalização e etc.
Felizmente, não prevaleceram.
Ao final, pode-se dizer que os juízes cumpriram o papel que lhes é reservado na Constituição: garantir o exercício das liberdades e não ser o instrumento da censura.
[a esse respeito, leia aqui: “STF deve assegurar direito a manifestações]
O voto do ministro relator Celso de Mello é primoroso e merece ser lido na íntegra, como uma verdadeira aula de direitos fundamentais -aula que até mesmo os demais ministros, se sentiram na obrigação de reconhecer publicamente.
É verdade que Luis Fux tentou estipular alguns “parâmetros” para as marchas, como a proibição da participação de crianças e adolescentes. Mas nesse ponto foi ignorado e ao final, admitiu votar com o relator integralmente.
O voto de Celso de Mello, que prevaleceu de forma unânime, é uma ode à liberdade de manifestação.
Segundo o ministro, ela “destina-se a proteger qualquer pessoa cujas opiniões possam conflitar com as concepções prevalecentes… impedindo que incida, sobre ela, por conta e efeito de suas convicções, qualquer tipo de restrição de índole política ou de natureza jurídica, pois todos hão de ser livres para exprimir idéias, ainda que estas possam insurgir-se ou revelar-se em desconformidade frontal com a linha de pensamento dominante…”.
É, sobretudo, portanto, um direito à discordância –sem o qual, a democracia perderia totalmente a sua finalidade.
Com a primorosa decisão, ganha a sociedade, que fica imune à violação de um direito que lhe é sagrado –manifestar-se na praça (que é do povo, como relembrou Carmen Lúcia).
É salutar ouvir da boca da ministra que gosta de marchas e passeatas. Afinal, juízes também são cidadãos.
Perderam aqueles que insistem em tratar a liberdade como um perigo, o direito como um risco à ordem pública –e por isso postulam por controles e tutelas, até sufocar a democracia.
Perigo à ordem pública é limitar direitos que a Constituição consagrou. A supressão das garantias é o caminho mais curto em direção à ditadura.
Alguns leitores apressados, com o mesmo viés repressivo, viram na decisão judicial um salvo-conduto para a disseminação de preconceitos, como se o exercício do direito à manifestação a tudo permitisse.
O voto do ministro Celso de Mello foi exemplar também neste quesito: não deixou a porta aberta à propagação do preconceito, do ódio, ou do racismo.
“É certo que o direito à livre expressão do pensamento não se reveste de caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico.
É por tal razão que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, povo ou grupo social não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão.
Cabe relembrar, neste ponto, a própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), cujo Art. 13, § 5º, exclui, do âmbito de proteção da liberdade de manifestação do pensamento, “toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.
Enfim, manifestar-se em prol da homofobia ou do racismo não é exercício da liberdade, mas castração dela.
Embora a unanimidade da decisão possa ter conferido um certo caráter de obviedade, a verdade é que a ADPF só foi ajuizada pela procuradora da República, Déborah Duprat, porque inúmeras decisões judiciais vinham proibindo as Marchas da Maconha há alguns anos.
As últimas proibições acabaram gerando episódios grotescos de violência.
Os pedidos de proibição eram formulados, em regra, por membros do Ministério Público e deferidos por juízes ou desembargadores estaduais.
A ação no STF que concluiu pela legalidade das marchas foi proposta pelo Ministério Público Federal e também apreciada pelo Judiciário.
A contradição mostra um fosso que é conhecido nos meios jurídicos, entre a jurisprudência dos tribunais estaduais e a dos tribunais superiores.
Se é assim, fica a pergunta:
Como entender a PEC Peluso, que pretende dar por findos os processos com o julgamento nos tribunais estaduais? Não seria um contrassenso fazer com que os processos transitem em julgado nos Estados, quando existe uma grande distância na interpretação da lei entre os tribunais locais e os superiores?
[Leia também:
Repressão à Marcha da Maconha é nostalgia da ditadura
A decisão mostrou-se coerente com os princípios insculpidos na Constituição. Do seu artigo, caro Marcelo Semmer, o que mais gostei foi a análise final, ou seja, que trata da PEC Peluso. Excelente a contextualização. O que vemos no Brasil é uma guerra de vaidades de juízes e desembargadores, que se utilizam da jurisdição para massagear o seu próprio ego. Talvez se alguém nesse país utilizasse da jurisprudência como fonte, efetiva, do direito a PEC Peluso teria algum sentido. Porém, enquantos juízes, promotores, desembargadores e profissionais do Direito em regra utilizarem-se de sua posição como meio de vaidade, não vejo sentido em transitar em julgado um processo na jurisdição estadual. (Kássio Costa)
Prezado Marcelo, primeiramente acho que todos os profissionais de direito deveriam ler os votos do Ministro Celso de Mello, independentemente de concordarem ou não com a opinião do decano da Corte. São fantásticos, de um profissionalismo exemplar. Outro dia um amigo me perguntou como adquirir a prática da escrita jurídica: meu conselho foi a leitura dos votos do Celso de Mello.
Mas você tocou num ponto importante: o fosso existente na jurisprudência de Tribunais estaduais e Cortes Superiores – e até mesmo quando em confronto com a Justiça Federal. Ao que parece, os Tribunais estaduais têm uma visão mais conservadora em alguns pontos, especialmente na tutela de garantias e direitos. Acho que é uma questão a ser analisada detidamente.
Marcelo,
Parabéns pelo texto e pela análise. Acredito que uma resposta ao questionamento final seria a implantação de um sistema de precedentes obrigatórios no Brasil, que em essência, por mais que possa se confundir, nada se assemelha às súmulas vinculantes.
É fundamental que o judiciário compreenda-se como um sistema e os juízes e desembargadores como membros destes sistemas e submetidos a ele. A lição de Luiz Guilherme Marinoni e tantos outros sobre as vantagens dos precedentes neste caos judiciário de decisões paradoxais se mostra como importante e necessária a reflexão.
Novamente, parabéns pelo texto.
Abraços
Exemplo mais que atual – e, infelizmente, repetitivo – do raciocínio por você explanado:
http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=102271
Abraços.
Os juízes e desembargadores são conservadores ou o STF por julgar as questões distantes do calor da sociedade está divorciado da realidade?
Tecnicamente é brilhante o voto do Ministro Celso de Mello, no "juridiquês", parabéns, 10X0! Mas, e quanto a realidade prática? Será que se fez justiça? Em nome do Estado Democrático de Direito vamos fazer apologia daquilo que destrói as nossas famílias? A nossa sociedade? Que conduz o ser humano ao mais ínfimo grau na escala da dignidade?
Será que com esse formalismo constitucional estamos contribuindo com um país mais sóbrio e são? Onde quase tudo pode? Onde estão as regras? A disciplina que deve existir para o crescimento de um país?
Invade-se avenidas importantes, limitando o direito de ir e vir da maioria das pessoas em nome da liberdade do pensamento? Dificultam o acesso de ambulâncias aos hospitais em nome da liberdade de expressão? Que direito é maior do que o de ir e vir? E da vida então? Onde estão as regras? Não é suficiente dizer sim às marchas, é necessário que as discipline também. Não quero que o meu país seja conhecido aí fora como o país do tudo pode em nome do Estado Democrático de Direito. Como já é no turismo sexual, território para condenados no exterior em plena democracia, Carnaval, futebol, etc.. Isso, geopoliticamente, parece-me que não é bom.
O Brasil está em crise ética e moral. Estamos batendo cabeça. Confundindo ditadura com regime militar, democracia com tudo pode. Precisamos urgentemente de educação! Sempre aprendi que o meu direito termina onde começa o do outro. Estamos sem limites, sem freios…
Com essa crise de valores perdida na história contemporânea, acho que é demais exigir decisões coerentes e sadias para a nossa sociedade.
Temos muito conhecimento, mas nos está faltando sabedoria na hora decidirmos…